Trilha do Pinhal: O descaminho no Planalto do Itatiaia

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Ao contrário da Bocaina e suas muitas “Trilhas do Ouro“ dando no litoral, a Mantiqueira sempre teve poucas picadas que ligassem a vasta planície do Vale do Paraíba ao planalto de Itatiaia. Principalmente devido à restrições do parque homônimo, que limita este acesso apenas à “Trilha Rui Braga“ (que sobe até o abrigo Rebouças), há também outra picada paralela que sai de Engº Passos e leva igualmente aos campos de altitude do ilustre parque. É a “Trilhado Pinhal“, antiga vereda que fora roçada (e cunhada deste nome) por Sergio Beck pelo fato de acompanhar o vale ascendente do Ribeirão do Pinhal. Assim, movidos pela curiosidade em buscar vestígios deste antigo carreiro, resolvemos explorá-lo neste fim de semana galgando as encostas serranas apenas até onde os limites do parque nos permitiriam. Resultado: Constatamos que uma bela opção de bate-volta trekkeiro está relegada ao descaso e sem fiscalização alguma, pois se tornou território de trânsito livre e irrestrito de outro tipo de “andarilho“. Os caçadores.

Texto: Jorge Soto&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp,&nbsp, &nbsp,
Fotos: Carlos Filho

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O dia estava perfeito quando deixamos a Dutra em direção à Engº Passos, onde nos deparamos com a grande muralha imponente da Mantiqueira silhuetada pelo céu azul daquele sábado promissor. Mesmo sonados por madrugar, para render na árdua caminhada que teríamos pela frente, o visual inspirador da montanha imediatamente nos revigorava. Assim, após cortar pra estradinha da Faz. Sta Helena, deixando o carro na frente da porteira da bucólica Fazenda Rio das Pedras e alongar o corpo mole, eu, Mamute, Roberta e Báh (Barbara) damos início efetivo à pernada, pontualmente as 8:20. O&nbsp,GPS aponta exatos 830 metros de altitude.

Cargueiras nos ombros, bastou aqui tocar estrada acima, por sua vez ornada de belas marias-sem-vergonhas, em suave aclive. Num piscar de olhos deixamos os morros desnudos de pastagens para ganhar a outra encosta da montanha, acompanhando efetivamente o verdejante Vale do Ribeirão do Pinhal no frescor matinal da mata, com seu ruidoso riacho correndo serra abaixo, à nossa esquerda. Deixamos pra trás qualquer vestígio de fazendas e sítios e nos vemos numa precária estrada envolta de muito mato, onde esbarramos com um matuto local. “Vão lá pra cima? Cuidado com a onça!”, nos alerta.

A estrada então emerge brevemente da mata num descampado de Araucárias, sentido Nordeste, e nos brinda com um belo visual do Pico das Prateleiras, reluzindo pequenino no alto. Olhando pra trás, a silhueta acidentada da Serra Fina recortando o céu azul deixa a Báh louca pra um dia se ver percorrendo sua famosa crista. Mas hoje nosso destino é outro e novamente a estrada se enfia na mata. Após cruzar uma precária ponte de troncos, onde o Rio Pinhal passa embaixo, pra agora nos acompanhar pela direita, nos enfiamos numa discreta picada em meio à mata, à direita, enquanto a estradinha desvia para esquerda, às 9:15, na cota dos 1100m.

Envoltos no frescor da mata, a picada sobe suavemente (para Leste) a encosta direita ao mesmo tempo em que o som do rio se perde aos poucos, lá embaixo. Após contornar alguns bambus e troncos caídos no caminho, nos vemos numa bela crista florestada, galgando cocoruto trás cocoruto. A partir daqui, a picada eventualmente torna-se menos batida e pouco óbvia, mas prestando atenção e tendo algum farejo, ela ressurge logo adiante, para felicidade geral. Aqui também, o que ajuda (e muito) são algumas marcações de fitas na vegetação, que começam a aparecer indicando o sentido a seguir.

Após descer um selado desta crista ascendente, a picada sobe forte até ganhar desta vez a encosta esquerda da montanha e dali andar em nível durante um tempo. As 9:50 esbarramos com um pequeno córrego, que molha nossa goela ressequida, pra dali continuar pela crista florestada supracitada. O caminho começa a apresentar bifurcações e algumas derivações laterais, mas basta manter-se na principal e, ao dar numa pequena clareira marcada por uns pequenos frutinhos no chão, tomar a ramificação da direita.

Um pequeno trecho de brejo antecede uma nova e puxada subida, que vencemos aos ziguezagues, até derivar novamente pra encosta serrana&nbsp,à direita. Ao atingir a cota dos 1430m, o desuso da trilha e a presença de alguma mata tombada ou invadindo o caminho torna-se regra, gerando dúvidas e muitas paradas pra farejo da mesma, as 10:20. Desde pequenas roças de urtigas, voçorocas de bambus das quais desviamos ou passamos por cima, até uma gigantesca árvore caída no caminho, que é contornada com relativa dificuldade. Mas com bom senso e muita paciência, a picada é novamente reencontrada logo adiante. Tênue, porém presente, principalmente pela presença das benditas fitas, já carcomidas pelo tempo. Pra sanar isto, vamos deixando novas marcações pra principalmente não termos dificuldade na volta. Destaque pra fitas em forma de “laçinho” deixados pelas meninas.

Uma breve piramba frontal repleta de lama é vencida aos ziguezagues, ás vezes com auxílio das mãos, mas que nos despeja novamente pra encosta direita da serra. E assim sucessivamente. Mas nos idos dos 1600m a trilha arrefece, pra alivio das pernas. Mas pra suplício das costas, surgem os medonhos túneis e voçorocas de grossos bambus e finas taquarinhas, que nos obrigam a agachar e engatinhar por largos trechos. Emergindo daquele emaranhado de obstáculos, a picada torna-se mais amena e agradável, sempre em meio à floresta e derivando novamente pra encosta esquerda da montanha, onde ouvimos claramente a algazarra de macacos no fundo do vale. No caminho, varias embalagens de ração de cachorro acusam a presença de caçadores na região. Estaríamos próximos de algum acampamento? Vejamos…

Ao meio-dia ganhamos o alto dos 1720m, onde a picada nivela e bordeja a encosta direita da crista, alternando suave sobe-desce. A mata já não é tão densa e se mostra relativamente reduzida como bem ressequida, exceção feita apenas às enormes e belas Araucárias, que surgem em profusão, e de onde um Jacu maroto sai voando apenas pra nos dar um susto. Eventuais frestas na vegetação nos revelam belas panorâmicas tanto dos contrafortes serranos do entorno como de toda extensão do Vale do Paraíba, ao Sul. Meia-hora após cruzármos com um discreto córrego escondido nos arbustos, e na dúvida se encontraríamos água mais adiante, enchemos nossos cantis como garantia pro nosso pernoite, seja ele onde fosse.

Ainda bordejando desimpedidamente a encosta forrada de Araucárias desta bela crista surge mais evidências de caçadores: Vestígios de arapucas e “jiraus de espera”, com providencial escada de paus amarrados rusticamente entre dois troncos próximos. Porém, mais adiante surge uma bifurcação, com&nbsp,o ramo da direita barrada por fitas amarelo-preto. Porém, como nosso sentido era justamente este último, ignoramos esta fita e tocamos em frente. Não tardou e após andar por breve túnel de bambus descobrimos o motivo da sinalização proibindo o acesso até ali: Ao lado de um bem-vindo córrego, uma clareira escondia um pequeno acampamento de caçadores! Pra evitar sermos recebidos com chumbo no alto dos 1800m, batemos palmas pra anunciar nossa presença, mas felizmente o dito cujo estava vazio. Uma lona de plástico cobria uma rústica tenda, com algum material pessoal, roupa e alguma comida ensacada, além de um fogão de pedra bem simples.

Voltamos então a bifurcação anterior e tomamos a ramificação da esquerda, onde descemos um tanto apenas pra breve marcha nos despejar noutra clareira abandonada com restos que parecia ser outro acampamento de caçadores, onde uma relíquia de lampião pendurado na árvore indicava que ali já houvera alguma ” infra” maior. Porém, dali nascia outra picada que ao invés de subir, descia, sentido norte. Caminho errado.

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Ás 13:40 as dúvidas quanto a continuidade da trilha surgem, e ali mesmo nos damos um pit-stop pra descanso e lanche, além de traçar alguma estratégia para seguir em frente. Duro mesmo era se manter parado, pois nuvens de moscas não nos davam sossego tal qual praga bíblica, atestando a presença de alguma carniça, embora nossas narinas não sentissem mau odor algum.

Decidimos então voltar ao acampamento anterior e dali azimutar a bússola na direção desejada (Nordeste) e tocar adiante, abrindo mato no peito, até reencontrar vestígios da picada. Entretanto, bastaram poucos minutos de suada ralação pra perceber que essa não era a opção mais inteligente, e optamos por buscar alguma picada saindo dali que contornasse as voçorocas gigantescas de bambus e taquaras ressequidas que bloqueavam nosso avanço. Bingo. Numa das extremidades da tenda partia, discretamente, outra trilha em meio ao bambuzal que bastou acompanhar e, com dificuldade inicial, nos levou a uma picada mais roçada onde o avanço era desimpedido e tranqüilo.

Ao atingir a cota dos 1800 desembocamos noutro “jirau de espera”, com várias trilhas que caiam noutros restos de acampamentos! Pelo jeito, aquela crista era dominada por caçadores! Entretanto, uma dessas picadas estava assinalada por uma fita vermelha carcomida que, dividindo o tronco com um belo exemplar de bromélia, era uma das remanescentes fitas do Sergio Beck, que passamos a acompanhar nos levando a galgar mais um degrau daqueles contrafortes serranos. Nossa prioridade era sair dali, pois não desejávamos topar com os “senhores” daquele pedaço, principalmente pelo fato do Mamute ter tido uma experiência nada agradável com os mesmos noutra ocasião, com direito a espingarda apontada na cabeça na frente de uma Queixada pendurada com as vísceras expostas, nalgum lugar que, pelo que se recordava, era próximo dalí.

Após cruzar o mesmo córrego do acampamento anterior, porém bem mais acima, contornando o taquaral medonho, a trilha ganha declividade considerável até vencer um novo e amplo cocoruto de serra. Dali bastou seguir a picada óbvia cujo sentido era reforçado pelas antigas e poucas fitas depositadas nos galhos das poucas árvores avulsas, agora nos idos dos 1900m. Entretanto, percorrendo a picada não tardou pra ela sumir ou o mato em profusão bloquear nosso avanço. Refizemos o trajeto dos últimos 50 metros umas 4 ou 5 vezes até terminar entregando os pontos, sem encontrar vestígios da continuidade da dita cuja. Mas certamente a mesma ressurgiria mediante alguma ralação, sem dúvida!&nbsp, Afinal, nos restavam menos de 800m pra sair da mata e ganhar a crista rochosa, já na base oeste de Prateleiras, onde meros 4km nos separavam do Refúgio Massenas, em linha reta.

Aqui estacionamos em definitivo e com a devida sensatez, quase as 17hrs. Não pelo fato da picada se ver obstruída pelo espesso mato, mas porque a partir daqui estaríamos (se já não estávamos) dentro dos limites do PARNA Itatiaia, segundo a plotagem grosseira e aproximada que traçamos de um mapa oficial, no GPS. A olho nú, diga-se de passagem. Portanto, fim da linha. Mas daqui também era possível encantar-se com as janelas na mata emoldurando o imponente Pico das&nbsp, Prateleiras reluzindo ao sol de final de tarde, à apenas 2km de onde nos encontrávamos, além dos alvos paredões verticais do Morro do Couto. Isto é, a pernada até ali já havia valido a pena.

Pelo fato do terreno apresentar-se levemente inclinado, nossa única opção de pernoite foi de bivaque em rede, só assim conseguimos dividir o escasso espaço livre com árvores de pequeno porte, bambus e enormes troncos de Araucárias. Fico imaginando o chão nos meses de abril e maio, forrado de pinhão! Pois bem, fatigados tanto pela noite anterior mal dormida como pela pernada até ali, nos recolhemos cedo a nossos respectivos aconchegos após beliscar alguma coisa, com destaque pro Mamute e Roberta, que ansiavam por estrear suas redes. A Báh mal montou a dela e sumiu em meio ao seu saco de dormir, tal qual uma lagarta, know-how adquirido no Pico da Neblina.

A noite caiu e trouxe consigo uma queda brusca de temperatura, que nos obrigou a trajar todos os abrigos que dispúnhamos. Dormi relativamente bem, apenas para mudar de posição diversas vezes como pra ensacar meus pés, que estavam pra lá de gelados, além de despejar uma lagarta, que desejava dividir leito comigo! O belo luar era filtrado esplendorosamente pela vegetação, mas&nbsp,também iluminava os contrafortes serranos opostos em tons argênteos diversos. Os sons da noite, por sua vez, se limitavam ao misto do piado de uma coruja com o das fortes refregas de vento sacudindo o arvoredo.

O domingo amanhece igualmente espetacular, as 6hrs, mas o friozinho matinal ainda nos prende por mais um tempo a nossos casulos suspensos. Só começamos a nos mexer quando os primeiros raios do sol, nascendo esplendoroso atrás das Prateleiras, adentraram na mata e aqueceram nosso espírito. Todo mundo tinha algo a contar daquela experiência noturna: O Mamute dormiu profundamente, mas jurou ter ouvido Queixadas na mata, a Roberta prometeu não dormir mais em rede pelo desconforto, além de ter escutado um chamado da Báh, esta, por sua vez, nem viu a cor da noite, pois desabou por 12hrs seguidas, embora tenha sentido algum frio.

Assim, após um rápido desjejum, arrumamos nossas coisas e empreendemos o caminho de volta, às 7:50. Pois bem, já logo de cara tivemos alguma dificuldade e perdemos um tempinho buscando a picada de volta. O forte vento da noite anterior havia despejado mais mata seca sobre a vereda, que o dia anterior estava perfeitamente visível! Voltamos alguns metros e nos separamos então na busca da dita cuja, naquela crista florestada onde a perda do senso de direção era bem fácil. Felizmente as marcações deixadas foram fundamentais pra não ficar andando em círculos.

Encontrada a trilha, bastou descer desimpedidamente o resto, às vezes tomando picadas erradas, mas logo retomando a certa. E mesmo com os perdidos e recolhendo o lixo (na medida do possível) deixado pelos caçadores, a descida terminou sendo mais rápida que a subida. As 9:10 alcançamos a bifurcação obstruída com fita pelos caçadores, as 10hrs cruzamos a grande árvore tombada e às 11:10 caímos outra vez na estrada, quiçá apressados por irritantes e inconvenientes mutucas que insistem em se banquetear conosco.

Chegamos ao carro pouco antes do meio-dia, sob forte calor num sol de rachar, totalizando quase 20km de pernada e mil metros de desnível! Ali também conversamos com o simpático Seu Maurélio, proprietário da Fazenda Rio das Pedras que, preocupado em ver nosso veículo largado, recomendou deixá-lo em sua propriedade e não na estrada, por segurança. Contou-nos que sempre aparece trilheiro que se hospeda em sua fazenda pra empreender a travessia (proibida, claro!) até Mauá, mas que sempre terminam retornando frustrados, em função da picada confusa ou do mato caído já logo no início. Simpatizante de montanhistas, Seu Maurélio não poupa queixas aos caçadores, um problema daquela serra datado de muito tempo. Contou também que já barrou a entrada dos mesmo trocentas vezes, mas que sempre terminam retornando por outros acessos. Lamenta o sumiço de muitas espécies por conta disso, como tatus e aves que antigamente costumavam dar as caras em sua varanda.

Nos despedimos do Seu Maurélio para tomar o asfalto de volta pra Sampa, mas não sem antes passar em Engº Passos afim de comer e tomar algo, às 12:30. Chegamos na Terra da Garoa bem cedo, por volta das 15:30, ainda com tempo suficiente pra pegar um cineminha no final do dia, apenas pra constatar que trouxera carrapatos a tiracolo, “souvenir” que vem se tornando comum das últimas trips empreendidas.

Voltando à analogia da Serra da Bocaina, cujos vários descaminhos ligando a planície ao litoral serviam apenas pra contrabandistas burlarem a fiscalização da Coroa portuguesa, este outro descaminho até o planalto de Itatiaia que atende pelo nome de “Trilha do Pinhal” hoje também parece burlar qualquer tipo de fiscalização (inexistente), já que caçadores circulam livremente com direito a acampamento fixo numa área, em tese, de preservação ambiental. Em contrapartida, montanhistas sequer são cogitados dentro dos limites do parque, tendo seu acesso rigorosa e sumariamente proibido.

Travessia até Mauá, nem pensar! Dessa forma, mais uma interessante opção de agradável caminhada ligando a planície à parte alta do mais famoso e antigo parque do Brasil é relegada ao descaso, largada aos caprichos de espingardas. A vereda poderia muito bem ser resgatada para uso montanhista, numa dupla missão de recuperação: da história da mesma, pois certamente deve ter sido outrora largamente utilizada pelos ” desbravadores” do planalto, como de preservação da natureza ao redor, longe de arapucas. E quem sabe assim a “Trilha do Pinhal” tenha seu chão&nbsp, – além de forrado com o dito cujo – mais pisado de forma legal e consciente. Dessa forma, sob novas perspectivas, possamos um dia apreciar a beleza dos contrafortes serranos deste recanto privilegiado e deslumbrante da Mantiqueira sem receio algum.

http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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