Travessia e Acidente no Vale da Ilusão

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Conhecido por seu vasto conjunto espeleológico, engana-se quem acha que o Petar vive exclusivamente da exploração de cavernas.

A enorme área que abrange o parque também
oferece inúmeras caminhadas, e uma delas leva por terreno hostil e acidentado
ao espetacular Vale da Ilusão, região menos conhecida do Vale do Ribeira (sul
de SP) e que não consta em nenhum mapa por não existir oficialmente. Procure no
Google e chegará apenas neste relato.

É justamente a travessia deste cânion
resultante de desmoronamentos milenares que encaramos no feriado último,
entrando pela Caverna Temimina e emergindo na Caverna Desmoronada. Pernada
árdua e selvagem com direito ao acidente deste que vos escreve, que teve como
combustível adicional a série de notícias pouco animadoras referentes ao futuro
do parque, cada vez mais incerto.

Chegando ao Núcleo dos Caboclos
Parece que havíamos saído da “zona de conforto” com antecedência, quando
não era o chororô estridente de um bebê ou a zona de “pé-vermeios” de
cara cheia voltando das baladas de Guapiara, a falta involuntária de descanso
no interestadual da Transpen rumo Apiaí deve ser incluída nos “porém”
de viajar ao Petar de busão. No entanto, a própria indefinição do parque com
relação a sua abertura inviabilizava qualquer planejamento prévio de visita com
carro.

Não há escolha. Dessa forma, as 3:45 da
madrugada saltamos do busão no cruzamento da SP-250 e a Estrada Mineradora
Espírito Santo, ainda distantes 27km de Apiaí, para onde as luzes do coletivo
se perderam na curva seguinte. Sob fina garoa, eu e o Felix percorremos os 10km
seguintes de meandros da sinuosa e precária estrada que nos levaria ao nosso
destino, naquela região montanhosa que faz parte do Maciço da Serra de
Paranapiacaba. Entre um papo e outro, a mata à nossa volta se adensava mais,
assim como o lama e o cascalho no caminho.

Vara-mato até as “temiminas”
Após a ponte sobre o rio Temimina, as 5:10 (e 8km do asfalto) chegamos na
portaria do parque, que estava fechada e sem sinal de vida naquele horário.
Continuamos ainda por mais 2km ate o início da trilha para o conjunto de
Cavernas Temimina, que sai à esquerda da estrada, anunciado por uma discreta
placa escondida pelo mato. Eram quase 6hrs e já amanhecia, portanto demos uma
breve descansada ali no chão, alem de beliscar alguma coisa como café-da-manhã
providencial.
As 6:20 começamos de fato a andar na trilha, por sinal muito mal conservada!
Diferente da ultima vez que ali estivera, parecia que estava em total desuso: o
mato alto tomava conta da picada quase que integralmente, e se fechava ainda mais
quando esbarrávamos com voçorocas ou vegetação caída das encostas! Felizmente
minha memória ajudou a tomar a direção certa e assim avançamos em meio à densa
e úmida mata, alternando facão a alguns trechos mais roçados. Assim,
contornamos em suave desnível a 1ª montanha ate alcançar um descampado com alto
capinzal salpicado de palmeiras solitárias. Aqui, uma bifurcação sinalizada nos
leva intuitivamente para direita. Entretanto, o alto capinzal nos força a varar
boa parte desse trecho ate alcançar uma minúscula pinguelinha que ajuda a
transpor um pequeno córrego que marulha placidamente.
Entramos novamente na mata fechada, primeiro bordejando com leve inclinação a
encosta esquerda da enorme serra ate alcançar o topo da mesma. Em seguida vem
uma suave descida pela encosta direita, ao mesmo tempo em que a chuva torna a
cair, embora já estivéssemos ensopados pela vegetação úmida. A trilha, que até
então estava roçada outra vez se fecha, o que nos obrigou a farejá-la repetidas
vezes! Troncos tombados e queda de barreiras apenas foram obstáculos naturais a
transpor durante um bom tempo, mas por sorte logo adiante encontrávamos
vestígios da picada.

É o mau tempo parecia estar em uníssono com
o estado precário da trilha tomada pela vegetação que ao longo dos anos retomou
seu aspecto e muito dificultou nosso avanço, provando também que não havia
trabalho algum de conservação da mesma nos últimos meses! Apesar da ampla visão
à nossa direita, o mau tempo impedia qualquer visual, e apenas nos reservava
uma vista parcial das montanhas forradas de verde envoltas em espesso nevoeiro.
Mas o cansaço dos músculos não impede que a Mata Atlântica mexa com nossos
sentidos, e o Felix didaticamente atenta ao cheiro de cânfora exalado por
algumas plantas invadindo nossas narinas, assim como vistosos jurubebas e
palmitos pedindo para serem degustados, ou até um curioso inseto com odor de
carbureto, o Opilião!
Na seqüencia veio a descida final que bordejando a encosta direita aos
ziguezagues, torna-se cada vez mais íngreme e demanda cautela devido ao chão
molhado e escorregadio. Este trecho nos tomou um tempo considerável de avanço
por motivos diversos: voçorocas de bambus e capim navalha obstruindo caminho,
carrapichos e mato espinhento se agarrando ao corpo e, principalmente nuvens de
vorazes pernilongos que não nos permitiam momentos de descanso, mas mesmo
assim seguimos em frente, decididos em alcançar nosso destino cavernoso!
A nebulosidade já havia se dispersado quando chegamos no fundo do vale,
dominado por um descampado de alto capinzal. Cruzamos com a trilha que vem da
casa do Seu Gastão, transpomos vários córregos até que a picada deriva para a
direita, se enfiando entre palmas e bananeiras para depois subir a encosta
esquerda da montanha seguinte. Passamos por enormes blocos de rocha até
finalmente alcançar uma pequena clareira em meio à mata. Aqui há uma
“trifurcação”, na qual a picada do meio é a que nos levaria a nosso
destino.

Assim, apos uma curta e íngreme descida,
bordejamos pela esquerda um enorme paredão rochoso até chegar, as 12:45, na
entrada da Temimina 1, na qual adentramos ao seu interior contornando rochas
besuntadas de limo e um chão ardiloso. Logo após a entrada temos um salão com
paredões de quase 100m de altura e um jardim interno belíssimo, iluminado
naturalmente por uma enorme clarabóia, formada pelo desmoronamento do teto da
caverna e de onde pende muita vegetação que lhe confere aspecto de jardim
suspenso num castelo medieval. Mais adiante, temos outro salão colossal também iluminado
naturalmente com amplo chão plano e seco, e restos de fogueira recente, onde
jogamos as mochilas. A caverna termina num barranco íngreme q dá acesso a um
rio subterrâneo, logo abaixo, em meio à visão da exuberante Mata Atlântica do
entorno.

Devidamente instalados, ficamos pasmos com o
tempo gasto para chegar ali (5hrs), também por conta do estado precário da
trilha! Como nosso destino final não era ali, ficamos apenas o suficiente para
fotos e comer algo! Voltamos então à trilha para continuar descendo forte através
da densa mata, ardilosas pedras e muita lama. As 14:30 atingimos o fundo do
vale, e após breve sobe-desce alcançamos o chão plano que sinaliza a entrada da
Temimina 2, onde há um amplo salão e um local plano ideal pra bivaque, além de
enormes estalagmites, estalactites, cortinas e colunas que tornam o local
majestoso.

Jogamos as mochilas ao chão e saímos para
explorar o interior da curta caverna. Após algumas escalaminhadas por pedras
lisas, alcançamos terreno menos acidentado, indo por uma galeria larga e alta com
traços de arquitetura gótica até finalmente dar num trecho que culmina num
enorme e perigoso abismo, de onde temos o 1º contato visual do Vale da Ilusão.
Do lado do penhasco, muitas cavernas adjacentes que provavelmente devem dar nas
mais incríveis galerias subterrâneas são convite certo à aventura, mas ficam para
uma próxima ocasião.

Assim, retornamos à larga entrada da caverna,
buscamos água 30m abaixo descendo um barranco, onde o Rio Temimina ressurge
após serpentear as entranhas da montanha. A vontade do Felix era adentrar (como
eu já fizera uma década atrás) pelo rio subterrâneo, com água na coxa e seguir
adiante, passar pelo “chuveirinho” e alcançar a saída justamente na
base do barranco da Temimina 1. Porém, o volume de água agora é maior e a
possibilidade iminente de chuva desestimula qualquer visita mais íntima à
montanha.

O resto da tarde ficamos de bobeira para
descansar e recuperar o sono perdido no busão. E antes que a noite caísse e nos
envolvesse com seus ruídos peculiares nos recolhemos a nossos acolhedores sacos
de dormir. O som hipnótico do rio, o gotejamento incessante sobre o calcário e os
chiados de morcegos nos fez cair nos braços de Morpheus sem muito esforço, numa
noite que se revelou fria e úmida. Naquele momento éramos verdadeiros
“homens das cavernas”, trazendo à tona os cinco sentidos em estado
aguçadíssimos, além do instinto básico de milhares de anos de nossos
antepassados pré-históricos, cozinhando e dormindo em abrigo sob pedra, próximo
da boca rochosa da gruta. Uma sensação primal e fantástica!

Singrando Pelo Vale da Ilusão
Levantamos quando a luminosidade matinal estendeu seus raios difusos à entrada
da caverna, as 6:30hrs. Tomamos um rápido café e arrumamos nossas mochilas,
totalmente sujas de calcário molhado. As 8:15 descemos ate o Rio Temimina, cujo
curso acompanhamos após atravessá-lo cautelosamente com água acima da coxa através
do seu leito rochoso-arenoso. Este trecho é por dentro da montanha, uma parte ôca
de uns 50m cavada pelo rio que é transposta sem maiores dificuldades ou auxílio
de lanternas, já que a luz nos extremos permite andar sem dificuldade numa zona
de penumbra, realçando mais as formações curiosas na rocha.
Para nosso alívio, não tarda muito e saímos do “buraco”, emergindo no
inicio do cânion do Vale da Ilusão, onde o rio mostra-se furioso, rugindo em
meio às pedras e serpenteando vale abaixo. Ao mesmo tempo, somos recebidos pelo
canto metálico de ruidosas arapongas, que ecoam em nossos ouvidos. Daqui em
diante bastou tomar uma trilha que acompanha o rio na sua margem esquerda, em
meio à mata densa e exuberante, com belos exemplares de samambaias, canelas,
cedros, figueiras, jatobás e o cobiçado palmito-juçara, que ali finca suas
raízes sem medo. Apesar da nebulosidade matinal, podemos vislumbrar sem
dificuldade que caminhamos paralelamente no meio de duas muralhas gigantescas
de calcário que ora se afastam ou aproximam entre si, o que confirma ser o Vale
da Ilusão um enorme cânion resultante do desmoronamento de uma única gigantesca
caverna a milhares de anos, e segue o rastro do Rio Temimina!

Logo a picada atravessa o rio e sobe a
encosta direita do cânion em ritmo forte, onde algumas cordas dispostas
estrategicamente ajudam a vencer o desnível. No alto encontramos uma bifurcação,
mas consultando o mapa (e a bússola) optamos por tomar a opção à esquerda, que
em meia hora nos levou à Casa do Seu Gastão!!! Trilha errada, claro! Voltamos
até o rio novamente, as 10:30, agora cientes que do Seu Gastão se pode acessar
diretamente o Vale da Ilusão.

Bem, parece que a partir daquele momento o
lance era apenas acompanhar o rio abaixo onde melhor houvesse essa
possibilidade, ora pelo seu leito pedregoso-arenoso, ora pelo meio do rio com
água até os joelhos, ora pela mata bordejando a encosta. Este trecho é muito
bonito porque o rio não é muito selvagem e do meio dele se vislumbra também o
entorno, com verdejante mata ao nosso redor e enormes paredões emergindo na
vertical, tal qual como se estivéssemos na base dos cânions de Aparados da
Serra! No caminho, atravessamos pequenas lapas e grutinhas formadas por pedras
colossais tombadas no rio! Mas ao meio-dia paramos num plácido remanso de uma
bucólica prainha fluvial, onde lanchamos alguma coisa, sob protestos de nuvens
de pernilongos!

Dando continuidade à pernada, o terreno
ganha declividade considerável e o rio que até então se mostrou calmo e sereno
ganhou força e selvageria incomuns, o que nos obrigou a sair dele e acompanhá-lo
por cima das enormes rochas desmoronadas no caminho, ora apenas pulando ou
escalaminhando as mesmas! Mas todo cuidado era pouco, porque a rocha de
calcário além de escorregadia é afiada como navalha! Um trecho bem nervoso, por
sinal! A paisagem daqui não deixa a desejar ao anterior e descortina muitas
cachoeiras em meio à correnteza acompanhando o rio revolto, vale abaixo. Após
este trecho, o rio se nivela ate “amansar” novamente, permitindo que
se ande no meio dele outra vez, sem problemas.

As 14:15 percebemos que o vale se afunila e,
bem mais adiante, faz uma curva acentuada para a direita. Como também parecia que
o rio logo entraria num sumidouro em meio a intermináveis voçorocas de
espinhos, resolvemos cortar caminho subindo a encosta à nossa direita para
depois descê-la e novamente continuar pelo vale até a resurgência do rio.
Começamos assim a varar o mato espinhento sob vigorosas facoadas até vencer o
primeiro e árduo degrau de encosta, que depois se mostrou menos hostil,
bastando contornar a vegetação alta e o arvoredo no caminho.

Mas a medida que se ganhava altitude,
paredões verticais começaram a exigir nossos dotes “simiescos” para
serem vencidos. E da-lhe escalaminhada com cargueira nas costas, até alcançarmos
o topo! Daí foi só descer pro outro lado, inicialmente através de valas e
terreno não muito íngreme, mas depois as coisas começaram a mudar. E pra pior.
Geralmente dávamos em barrancos quase verticais ou fendas rochosas enormes,
onde tínhamos que descer sempre pela opção menos perigosa até a base da
“desescalaminhada” de qualquer jeito, sem corda.


O Acidente e Queda no Paredão

A essa altura estávamos exaustos e já escurecia, mas mesmo assim teimamos em
descer naquelas condições, até porque local decente pra bivaque ali era
impensável. E a teimosia aliada ao cansaço gerou a desatenção que se seguiu. O
Felix começou a descer um enorme paredão vertical de quase 40m e fui logo
atrás, mas já de cara vi dificuldades em encontrar apoio decente para os pés
enquanto minhas mãos se apoiavam numa raiz que me pareceu confiável. Foi então
que liberei meus pés da última agarra e fiquei praticamente pendurado pelas
mãos naquela raiz, enquanto meus pés tentavam desesperadamente buscar algum
apoio! E nada. Detalhe: a inclinação tendia para negativo. Foi ai que senti a
raiz ceder. “Fodeu!”.

Gritei pro Felix que despencaria se não
achasse apoio pros pés e para uma mão. Mas a raiz cedeu antes que concluísse a
frase num sonoro palavrão. Tudo foi muito rápido. Apenas lembro-me do estampido
da raiz quebrando e do meu peso me levar para o vazio abaixo, de costas.
Lembro também de passar pelo Felix e do seu grito gutural a me ver cair. Só
lamentei não ter dado um tchauzinho pra ele no caminho. Apenas fechei os olhos
e deixei rolar. Lembro do ar passando velozmente por mim e do primeiro baque forte
que senti nas costas ao bater nas árvores, de rodar e receber as pancadas seguintes
pelo corpo todo.

Comportei-me como uma bola de fliperama, batendo
de um lado pro outro enquanto caia, principalmente quando meti a cara num
tronco que mandou meus óculos para o espaço. Apesar disso, foram as árvores que
amorteceram aquela queda livre. Até que finalmente senti um ultimo baque, seco,
e percebi que não caia mais, havia estacionado no pé daquele imponente paredão,
numa estreita canaleta coberta de terra e folhas. Abaixo a pirambera
continuava, mas bem menos íngreme. Por sorte ainda estava consciente e não
quebrara nada, mas logo senti um ardor na mão que se revelou um corte bem
fundo.

Passado o susto gritei para tranqüilizar o
Felix que, desesperado, também gritava lá de cima. Desceu rapidamente e me
examinou com receio que tivesse algum dano interno ou neural. Mas nada, ainda
bem. Assim, à luz de lanternas, usou seus conhecimentos de primeiros socorros
para cuidar da mão. Foi ai que percebi minha bermuda molhada e tingida de
vermelho e que a mão não era a única machucada, principalmente quando meus
dedos tatearam um belo, quente e macio naco de carne pendendo da minha
bunda! Q situação, hein? E tome gaze, esparadrapo, ponto falso, etc. Mas que
fique bem claro, o Felix cuidou do meu popô de forma profissional!
Ainda adrenados e tensos pelo ocorrido, não nos restou opção senão nos acomodar
naquela canaleta inclinada da encosta e tentar relaxar, mas isso foi difícil porque
eu ainda tremia pacas em função do choque. Nestas horas um bom whiski faria muito
bem! Joguei o isolante e me cobri de bruços com um plástico, evitando que os
pernilongos se banqueteassem comigo! Sem espaço para muita coisa, nos
resignamos a comer pedaços de miojo cru quando começaram a cair os primeiros
pingos de chuva!

Só torcíamos para que não fosse torrencial, porque
aquela canaleta na qual estávamos aninhados logo viraria um rio. Mas por sorte
a pancada foi passageira, e depois as
frestas em meio ao arvoredo revelaram um céu totalmente limpo, com direito a
uma lua cheia linda e maravilhosa! Apenas dormir foi algo meio complicado, o
terreno estreito e inclinado não permitia maior conforto, nessa que provavelmente
foi uma das noites mais longas de minha vida.


Do Vale da Ilusao Até a Desmoronada

Despertei ao romper do dia apenas para sentir o corpo todo dolorido, parecia que
tinha sido mastigado e cuspido pelo tinhoso! No entanto, não tínhamos escolha e
precisávamos descer! Tomamos um rápido lanche e demos continuidade à
empreitada, claro que desta vez menos ágeis e com atenção redobrada! Da canaleta
onde estávamos bastou seguir em ziguezagues pela encosta até dar novamente num
trecho mais íngreme e escorregadio, que precisou ser vencido na
desescalaminhada, no entanto, o Felix sempre ia na frente já ancorando bons
lugares para que eu pudesse me firmar, tática que revelou-se bem eficaz e
segura, embora vagarosa. Com o esforço e os movimentos senti escorrer filetes
de sangue pela perna, sinal que a ferira reabrira. Paciência e vamos em frente,
“menstruado” ou não! Até porque apenas eu conhecia a
“trilha” para sair dali.
Ao chegar ao fundo do vale, após voçorocas de espinhos e muitos formigueiros,
alcançamos outra vez o Rio Temimina, as 10:15, e lá tivemos um bom descanso,
complementamos nosso precário café-da-manhã e o Felix enfaixou novamente meu
rabo com os resquícios de esparadrapo e gaze que dispunha, de forma a que agüentassem
até o final. Apesar da gravidade dos meus ferimentos, procurava me distrair com
a paisagem do local que é digno de nota: o cânion quase empareda o rio que
desce furiosamente vale abaixo em grande declividade em meio as pedras e muitas
cachoeiras!
Ou seja, agora o jeito era seguir bordejando o rio pela íngreme
encosta a esquerda, buscando não nos afastar muito dele a não ser que houvesse
necessidade. Dito e feito. Já no inicio nos lançamos na encosta, nos firmando
vigorosamente na vegetação disponível, para contornar paredões verticais à
nossa frente. Na seqüência, desescalaminhamos a ardilosa encosta até ganhar o
leito do rio outra vez, agora mais calminho e plácido.

O dia estava radiante e o vale despontava em
todo seu esplendor, mas bastou acompanhar o rio que logo ele sumiu nas entranhas
da terra. Daí nos orientou o mapa, a bússola e até os paredões do cânion
indicavam que o sentido correto a ir a partir dali seria sempre sul/sudeste! Na
verdade, agora palmilhávamos o leito pedregoso do que outrora fora um rio,
agora tomado parcialmente pela mata, mas que não oferecia maiores problemas de
ser transposto. Dessa forma alcançamos o selado onde as muralhas do cânion
pareciam se encontrar, margeando o paredão direito assim como enormes grutas e
fendas escondidas no caminho.
Do outro lado do selado e ainda rumando na direção apontada pela bússola, logo
começamos a ouvir o som borbulhante de água. Descendo a piramba aos
ziguezagues, logo tivemos contato visual com rio emergindo mansamente do
interior da montanha, singrava o vale logo abaixo em meandros rumo sudoeste!
Era o Rio Temimina novamente, que neste vale passa a se chamar de Pescaria, que
só conseguimos alcançar as 16hrs, após um ultimo trecho de escalaminhada
vertical em meio às pedras! Com água até a cintura, atravessamos o rio ate sua
outra margem onde exultamos de felicidade por chegar até a clareira que nos
levaria de volta, a mesma que dá acesso a curta trilha que leva ate a Caverna
Desmoronada, que declinamos em visitar por conta do tempo e das circunstâncias!

A Volta Intermiável pro Núcleo dos Caboclos
Após um breve descanso e lanche merecidos, tomamos a trilha de volta
acompanhando o rio durante um tempo. Mas logo a picada deixa o rio, subindo aos
poucos a encosta da montanha à nossa direita, de onde nos despedimos do Vale do
Pescaria. No entanto, deixar o vale nos tomou um tempão por conta do cansaço e
do desnível de quase 350m ainda a ser vencido!

Passada a boca da caverna Pescaria, a trilha
parece inclinar mais enquanto nos “arrastamos” montanha acima,
arfando à beça! Já quase escurece quando alcançamos o alto, marcado por enormes
blocos de pedras, onde a picada começa a descer suavemente.

Apressamos o passo e o mato começava a tomar
conta da trilha, e ficar perdidos no escuro – quase no final – não estava em nos
nossos planos. Mas isso quase aconteceu, porque perdemos um tempão buscando o
trecho final da trilha que nos levaria até a casinha abandonada, já visível de
onde estávamos! Ao alcançar a dita cuja, bastou tomar a precária estradinha à
esquerda que em 10min nos levou a estrada principal do parque, que nos recebeu com
cintilantes vagalumes. Na dúvida entre ir pra portaria ou pro núcleo, fomos em
direção deste segundo, crentes que a distancia fosse menor. No entanto, os
quase 3km me pareceram o triplo por conta do meu estado de exaustão, já não
andava e sim cambaleava, jogando meu peso para frente afim de avançar uns
poucos centímetros.
Por fim, alcançamos a Sede do Núcleo Caboclos quase 20hrs, apenas para constatar
que não havia ninguém! Eu, literalmente, desabei na varanda da casa principal,
exaurido! Por mim, pernoitaríamos ali mesmo e no dia seguinte voltávamos para
pegar o busão no asfalto, mas o Felix insistiu em que eu ficasse ali
descansando enquanto ele voltava os quase 8km até a portaria p/ buscar ajuda. E
foi o que fez, se lançando a caminhar em meio a escuridão enquanto eu me
aninhava sobre o isolante e me cobria com um plástico naquela fria noite de
terça, eventualmente sentido “formigas” nas pernas, que depois
revelaram ser enormes carrapatos.


No Pronto Socorro de Apiaí e a Volta

Dormia quase confortavelmente quando fui acordado por veículos chegando, as 2
da madrugada. Era o resgate de bombeiros e uma saveiro do Ibama. Os
primeiros me examinaram minuciosamente enquanto outros perguntavam do ocorrido,
demonstrando preocupação enquanto fotografavam meu combalido
“derriére”. Rezo para que esse material não circule no YouTube.
Na verdade era o Fabio, o diretor do Petar
em pessoa, cuidando de sua 1ª ocorrência nesse sentido, já que estava a poucos
meses no cargo. Percebeu de cara que não éramos amadores porque até ele
desconhecia esse tal “Vale da Ilusão”, salientou que não havia nada
de errado – afinal, o parque havia sido aberto a visitação – a não ser o fato
de não termos notificado nossa entrada. Da mesma forma, nos também tivemos
nossas considerações porque achamos estranho não haver ninguém na sede do
núcleo (!?).
Enfim, me enfiaram de maca na van do resgate e fomos à Santa Casa de
Apiaí, onde chegamos quase 40min sacolejantes depois. Lá, as jovens plantonistas
– felizes da vida – deram um trato nos meus ferimentos, além de me enfaixarem
até não poder mais. Agora só faltava a torcida do Corinthians também mexer no
meu traseiro. Na seqüência, nos resignamos a passar a noite ali mesmo, na sala
de recepção do pronto socorro. Assim que clareou não perdemos tempo em rumar
num piscar de olhos para a rodoviária e tomamos o bus das 8hrs com destino à
Terra da Garoa aonde chegamos após muitas paradas, quase as 14hrs!
E essa foi nossa pitoresca epopéia por essa região inóspita do Vale do
Ribeira que apesar dos imprevistos, periga ser a última na região. A seqüência
de noticias de embargo e fechamento do parque, de disputas burocráticas do
governo federal e estadual no plano de manejo, e da recente notícia da construção
da Hidrelétrica do Tijuco Alto tornam ainda mais nebuloso o futuro do Petar, ou
pelo menos parte dele. Contudo, espera-se que também não passe de fogo de
palha, e logo se alcance um consenso viável e sensato para todas as partes
envolvidas.

Seria triste jogar todo este belo patrimônio
natural, literalmente para baixo d’água. Assim, o desconhecido “Vale da
Ilusão”, que não consta em nenhum mapa por não existir em caráter oficial,
quiçá venha a não existir mais de fato. E numa ótica para lá de pessimista, quando
as águas futuramente tenham engolido seus fundos vales a simples menção do
mesmo não passe de uma vaga lembrança. E a possibilidade de palmilhar este belo
rincão do Petar realmente não passe de pura ilusão.
Jorge Soto

Fotos: Eduardo Felix

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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