Possíveis cumes

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O clima rigoroso do extremo sul da Patagônia transforma suas montanhas nevadas e agulhas imponentes, nos locais de escaladas mais difíceis de serem concretizadas. Isso para quem um dia ousar em algum cume pisar.


Lá, a tentativa de ascensão está diretamente relacionada com a experiência e a técnica acumuladas naquele ambiente específico, juntamente com a condição física e mental adaptadas à condições extremas. Só com muita perseverança e sorte, você possuirá a&nbsp, possibilidade de chegar ao cume sonhado e ali contemplar a beleza local. Depois de curtir o visual e recuperar a energia, descer com a experiência no pensamento e o olhar sempre em busca de um ponto seguro para reunir e rapelar com a vontade de se aventurar em novas agulhas patagônicas.

Com muito respeito retornará à Chálten, e lá continuará a busca e a espera por algo que está além de nós, o bom tempo e a sorte. O tempo, esse sim, passa de forma rápida, e na velocidade dos ventos o cérebro trabalha imaginando como e quando será&nbsp, a escalada dos sonhos. De acordo com a sua motivação quase tudo acontece: escaladas esportivas, boulders, caminhadas, travessias, novos amigos e parceiros de cordada são formados, mas a Ideal condição climática para tentar a escalada, essa sim é difícil de acontecer. O bom tempo aparece com a sorte e, quando chega os escaladores desfrutam de escaladas magníficas, em agulhas graníticas impressionantes que afloram das profundezas do planeta, rompem os glaciares, e com suas perfeitas fissuras rasgam a rocha e levam a energia e nós direto ao cume de encontro ao céu,&nbsp, e com suas arestas afiadas cortam&nbsp, os ventos gelados que trazem a neve, e seguindo a vontade do pintor ”Deus” chapisca o cenário de branco. &nbsp,

Existem dias que nos sentimos acima das nuvens, momentos que merecem ser vividos intensamente para que no futuro não soframos com lamentos. Em outros dias, apenas buscamos ver e sentir o que realmente merece ser vivido e, é assim a busca de quem vive a vida na montanha: ver e sentir para poder viver.

Foram muitos dias de clima péssimo, vários porteios de equipamentos a Pedras Negras e uma ida à base da via Afanassief no Glaciar Norte do Fitz Roy para reconhecer e deixar algumas provisões. O lugar é inóspito e puro, rodeado de imponentes agulhas, que tem seu silêncio quebrado apenas pelos os ventos ou pelo desprendimento de algum elemento do lugar. Até que, depois de algumas tentativas para escalar a Guillaumet (que não passaram do bivaque) nos apareceu uma possível “janela” de bom tempo. Na espreita, eu, Tartari e Pira (um amigo argentino) aproveitamos a oportunidade e esperamos a hora certa de sair da barraca.

Já passava das dez horas da manhã quando contagiados com a motivação de Pira ao perceber&nbsp, que parara de nevar e o vento tinha estabilizado. Saímos em disparada rumo a face leste da agulha Guillaumet para a base da via “Amy”, que era a rota mais indicada naquele momento gelado. Fazia muito frio e a neve estava em ótimas condições, com a rimaya&nbsp, quase toda coberta, assim escalamos toda a canaleta. Ao chegar na aresta&nbsp, que conduz até a rampa de neve final, o vento havia sumido e ao nosso arredor muitas nuvens descarregavam chuva em pontos isolados da estepa. Nesse momento, a dificuldade maior era escalar a rocha gelada sem luva, e desentupir as fendas cheias de gelo para progredir e proteger.

Com muita vontade, sem desperdiçar a oportunidade, chegamos ao cume depois de 40 dias de espera, e muito contentes aproveitamos o momento, por ali estarmos e podermos contemplar o lindo visual dos cumes congelados das agulhas Mermoz e do Fitz Roy e de outras como o Torre, Polone e Pior Giorgio com suas capas de gelo assustadoras que nos vigiavam de forma amigável e aliada ao reter as nuvens que viam da enorme placa de gelo Continental. Parecia que o tempo tinha parado para subirmos e descermos em segurança, pois, ao chegarmos ao bivaque as nuvens encobriram as montanhas, os ventos voltaram e junto veio a neve e o frio tornando o cenário igual aos dias passados.

Já nos sentíamos mais confiantes e entrosados naquele ambiente gelado e na parceria de cordada. Assim, começamos a imaginar como seria escalar o Fitz com as condições invernais do momento. Até que o clima começou a estabilizar e&nbsp, surgiu a primeira “janela” de 3 dias bons, o que resultou numa corrida maluca para as montanhas. Todos os escaladores saíram em busca de realizar seus objetivos, mas devido as condições passadas,&nbsp, cinqüenta dias de clima ruim, poucos obtiveram êxito. Não foi o caso do brasileiro&nbsp, petropolitano Nicolau que lutou como um guerreiro&nbsp, e com sorte chegou ao cume do Fitz pela rota Super Canaleta.

Nós saímos 2 dias antes&nbsp, da “janela” e acampamos no glaciar Norte com o objetivo de conferir os equipamentos na base e depois entrar naquele paredão e subir até aonde satisfizesse nossas cabeças, pois, sabíamos que chegar ao cume seria impossível com tais condições. Quando chegou a hora de escalar o dia estava azul, muito frio e um pouco ventoso, ao sair dos primeiros raios solares no céu iniciamos a via por uma parte cheia de blocos soltos. Na sombra seguimos até encontrarmos com o sol depois do meio dia em um filo. Lá descongelamos nossa motivação, e continuamos a subida por mais algumas cordadas até que desistimos de lutar contra o frio e decidimos descer com a satisfação de ter vivido o momento. Agora,&nbsp, também poderíamos imaginar melhor como seria mais à frente. Mas a realidade nos mostrou, aos poucos, as sequelas do frio que começaram a aparecer em nosso corpo. Sérgio teve princípio de congelamento nos dedos do pé e o Pira falta de sensibilidade nos dedos do pé e eu nos da mão. Nada pior aconteceu, só que para Sérgio esta tentativa consumiu a possibilidade de outra escalada na temporada e agora sem meu amigo e parceiro de cordada o nosso objetivo distanciou-se da realização. Outras escaladas estavam por vir e com o tempo outras cordadas surgiram na minha vida, novas amizades foram conquistadas e antigas foram fortalecidas em Chaltén, outras consolidaram-se nas montanhas.

Depois de alguns dias fui tentar a agulha Mermoz pela rota “argentina”, junto de Valentim e Silvana, dois amigos argentinos que participaram de muitos momentos de descontração e escaladas esportivas. Juntos, decidimos provar aquela gigantesca e imponente parede. Logo no início percebemos que estava tudo congelado e que encontraríamos muita parte mista (rocha e gelo), mas continuamos&nbsp, mesmo ao saber das dificuldades que teríamos pela frente, até o momento que resolvemos descer com todo o conhecimento conquistado ali e felizes de ter vivido mais um dia intenso de escalada na imponente patagônia.

O bom tempo firmou e tudo começou a descongelar, aumentou a movimentação dos glaciares e os ventos acalmaram e assim os dias se tornaram mais quentes deixando as aliadas fissuras perfeitamente limpas para nos conduzir ao cume com a mais pura escalada em livre. Assim me juntei a cordada de Pira e Marcus Frischknecht, meu novo amigo argentino, e fomos tentar subir a agulha Saint Exupery pela via “Claro de Luna”, um clássico patagônico. Como um sonho escalamos a rocha em condições perfeitas, com muita determinação chegamos ao cume e descemos até o bivaque, depois de&nbsp, 22hs de atividade física e mental intensa, relaxamos e curtimos a satisfação por ter vivido mais um dia de sorte, onde tudo ocorreu perfeito.

Apesar de estar preparado e adaptado para aquele ambiente começaram a aparecer sinais de desgaste no corpo, pois&nbsp, a cada tentativa ou cume era uma experiência única que custava muito caro ao corpo e a mente. Só que a motivação ainda falava mais alto e alguns dias depois lá estava eu, junto do Mario, um amigo suíço, prontos pra escalar, na base do Pilar Casaroto, pra tentar subir&nbsp, até o cume do Fitz Roy pela via “Mate, Porro e Todo Los Demais”, uma sequência de diedros incríveis e imponentes. A qualidade da rocha e da escalada nos motivaram a superar lances ousados e difíceis que aos poucos consumiram nossas energias, tornando distante a realização do nosso objetivo. O sonho foi interrompido pela dificuldade técnica da via e pela estratégia errada que adotamos. Nossos corpos desgastados e cansados não correspondiam mais com as dificuldades imposta pela natureza, assim resolvemos descer e dormir no glaciar e lá refletir e curtir a última noite nas montanhas.

&nbsp,Assim encerrei minha temporada, com um acumulo de experiência importantíssimo para outros possíveis cumes e feliz por ter conquistado muitos amigos e fortalecido velhas amizades. Mais contente ainda, por ter vivido tudo na medida que o tempo veio a&nbsp, me oferecer e os cumes que realmente vieram a acontecer. Tudo graças a Deus e com ele sigo na minha busca. Também agradeço a todos os amigos que enviaram energia positiva e a GRIMP equipamentos que fortaleceu com material necessário para escalarmos a rocha com muita, muita segurança.
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