A ferradura inversa

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Domingão de previsão mais do que ótima, não pensei duas vezes em me mandar prum banho refrescante nalguma das inúmeras quedas da região que faz divisa entre Santo André e Rio Grande da Serra (SP).

Sim, reconheço que jurei de pé junto jamais pisar novamente nos vales situados entre a Serra do Meio e do Mogi aos finais de semana. Mas mordi a língua ao constatar q com um pouco de planejamento é possível fugir da muvuca habitual e realizar o tradicional circuito conhecido como “Ferradura da Fumaça”, só que no sentido contrário. Só assim pra reparar em detalhes, diferenças e particularidades q nos passam despercebidos no circuito normal. E até enxergar com outro olhar esta grande pernada, que particularmente julgo clássica na região.

Doido por um mergulho nesta época atípica de sol a pino e calor escaldante em pleno inverno, decidi de última hora me mandar pras proximidades de Paranapiacaba. Após vários furos de última hora, a única que topou me acompanhar foi a Thais. Melhor assim. Pernada mais ágil e menor preocupação com horários. Assim, saltamos do tradicional latão azulzinho pouco depois das 8hr, acompanhados da numerosa muvuca duma agência q se dirigia pra Cachu Fumaça. Felizmente nosso roteiro diferia (e muito) do deles e enqto eles se pirulatavam em fila índia pela trilha ao largo da “Torre dos Tênis”, eu e a Thais ainda retornamos um tanto pelo asfalto, pra sé então mergulhar na mata em direção a borda da serra.

Pernada já realizada vezes sem conta por esta picada – q corre paralela á da Fumaça em meio a uma vasta região planáltica  – q nos proporciona a tranquilidade e silêncio q qq pessoa busca ao adentrar na natureza. Silêncio só rompido pelo indefectível zunido eletrostático das torres de alta tensão próximas. As condições da vereda eram bem satisfatórias, uma vez q mesmo menos pisada o mato ainda existente e a quase ausência de brejos garantia o fácil transito na mesma sem gdes desvios. 

Após vencer as manilhas a vereda finalmente mergulha no frescor da mata mais espessa, descendo suavemente até cair as margens do cristalino Rio da Solvay. Costurando o mesmo pela margem e chapinhando na água qdo necessário, num piscar de olhos caimos no Lago Cristal, onde uma galerinha acampada curtia aquela manhã agradável de domingo. Tb pudera, a previsão de noites limpas era convite mais q tentador pra apreciar o céu coalhado de estrelas, seja do alto da montanha ou por frestas do arvoredo no fundo dum vale. Ainda assim, contrariando minha mais medonha previsão, a presença de muvuca era bem reduzida e isso era bom sinal aquele horário matinal.

Começou então a descida propriamente dita do Vale dos Cristais, sempre acompanhando o furioso rio, q agora despencava serra abaixo numa sucessão interminável de corredeiras, poços e pequenas quedas. Trechos de simples caminhada se mesclaram naturalmente com os de (des)escalaminhada e assim atingimos a base da Cachu Escondida num piscar de olhos. Incrivelmente não havia vivalma no lugar, cunhando de razão a decisão de sair bem mais cedo q o habitual pro rolê. O vale era praticamente nosso, e qto mais avançássemos a possibilidade de encontrar alguém era cada vez mais remota.

Mais adiante abandonamos a floresta e a descida do vale se deu em terreno aberto, em meio as pedras. Este é o trecho q mais gosto pois os horizontes se expandem de tal forma q é possível apreciar td topografia ao redor. Desde a confluência do Rio da Solvay com o Rio das Areias (ou da Fumaça), até o inicio do Rio da Onça no chamado “Portal”. A perda de altitude é significatica, sempre na base da desescalaminhada de rochas ora numa margem do rio, ora na outra. Com direito até literalmente “entrar pelo buraco” num determinado trecho. Mas não há pressa pra gente, pois ainda era bem cedo e portanto não havia necessidade de correr naquele lugar q certamente foi concebido pra ser apreciado em tds seus detalhes.

E foi exatamente isso q fizemos. Ao constatar que havíamos chegado no enorme lago da “Cachu do Portal” (onde havia apenas meia dúzia de jovens) em horário avançado, decidimos esticar rio abaixo até a “Garganta do Diabo”. E lá fomos nós, no mesmo compasso anterior porém avançando através de declividade mais amena. O suor já escorria farto pelo rosto e o corpo pedia um banho refrescante, premio este q deixamos apenas pra mais adiante. Ao chegar no “Gogó do Tinhoso” tropeçamos com um trio de jovens preparando uma comida do modo mais tosco possível, o q nos forçou ir além do vértice do cânion.

Escalaminhando o lajedão de encosta logo tomamos a crista descendente, paralela ao desfiladeiro, e tocamos pra baixo através de ardiloso e liso chão de terra. Na exígua área de acampamento inserida neste miolo de braço serrano havia uma barraca, pela qual passamos em baixo tom pra não despertar seus ocupantes. O final de descida até a base do cânion foi tranquilo, apenas atentando pras pedras e lajedos lisos a margem do rio. E assim, coisa das 11 e pouco chegávamos na base da “Cachu do Anubis”, onde largamos as coisas e imediatamente caímos na água. Não havia ninguém naquele lugar paradisíaco, cristalizando de vez nossa decisão de ter não apenas ter saído cedo como haver esticado até ali. Deu até pra dar uma rápida explorada num lugar q nunca tinha pisado, no caso, o nível superior da “Cachu do Paredão”, rio abaixo.

Muito banho, lanche e até cochilo, este por sinal interrompido pela revoada das trocentas andorinhas que vão e vem a seus ninhos nas fendas da cachoeira. E após cerca de mais de hora, percebemos q devíamos começar já o retorno. Mas claro, não sem antes escalaminhar a encosta esquerda da queda pra mais um tchibum, desta vez no interior do desfiladeiro. E assim, cautelosamente tateando com os pés o lugar mais aderente onde pisar, vencemos as rochas e lajedos mais lisos onde havia até uma corda ficada a grampos q antes não havia e foi novidade e primeira surpresa pra mim. E tome mais um banho refrescante, desta vez emparedados pelos elevados e imponentes muros basálticos do cânion. Dureza foi sair dali depois, uma vez q o nível da água estava mais baixo q o normal e a escalada dos apoios na rocha demandou não apenas esforço extra como conhecimento técnico do esporte. Sorte q a tal corda nos grampos supracitada ajudou (e muito) nesse intento.

Retornamos então pouco antes das 14hr, satisfeitos e bem mais revigorados q na ida. A volta se deu sem pressa, e no caminho tropeçamos com muita, mas muita gente indo praquele lugar q por pouco mais de uma hora havia sido unicamente nosso. Claro q tivemos pausas e pausas, a Thais pra mastigar sua barra de cereal e eu prum tchibum refrescante. A “Cachu do Portal” incrivelmente transbordava de gente e por pouco não chamei de “Piscinão de Ramos”, guardadas as devidas proporções, claro. “E ai, valeu a pena esticar lá pra baixo?”, perguntei pra Thais, olhando pra farofa a nossa volta. “Sem dúvida!”, respondeu a retada muié, que também atende pelo singelo apelido “garota do colar de pérolas”.

Pois bem, novamente na confluência dos cursos dágua iniciamos a subida propriamente dita do Rio da Fumaça (ou das Areias), através da breve picada e dos lajedos q tangenciam o pirambeiro Rio Vermelho, por sinal bastante seco. Foi aqui que tive a segunda surpresa. Uma trilha bem aberta, aliás uma “quase avenida”, esgueirava-se encosta acima no primeiro ombro serrano q acompanha as quedas do Rio da Fumaça. Fiquei pasmo com a presença dessa vereda q antes inexistia, que decerto facilita a vida dos menos condicionados fisicamente ou daqueles q não tem muita facilidade com o trecho de (des)escalaminhada de pedras q conveniente se desvia pela esquerda. Decerto foi aberta por algum dos inúmeros “grupos ecoturistas” de internet (e q normalmente são os que demandam resgate por despreparo ou mau planejamento) ou por alguma agência fundo de quintal q deseja dar moleza á sua clientela. Melhor pra gente, pois a tal vereda passa longe das duas gdes cachus da Fumaça. Noutras, menos farofa.

Enqto uma numerosa galera subia a passo-de-tartaruga-manca a pirambeira trilha, eu e a brava Thais desviamos pras pedras a margem do rio e iniciamos q escalada do mesmo. Logo percebemos q a coisa não seria muito fácil, pois a umidade fustigada pelas sucessivas quedas se concentrava no vale (sem evaporar), tornando as pedras lisas feito sabão. Lógico q aqui redobramos cuidado e assim fomos avançando, lentamente. E logo de cara nos deparamos com o trecho mais tenso da ascensão: uma extensa laje inclinada q normalmente se sentado, feito tobogã, mas que pra subi-la no sentido oposto demandou suor e sangue frio. A ausência de agarras e a superfície lisa nos obrigou a subir de forma peculiar: a Thais feito caranguejo e a este q vos fala descalço, pois o uso de meias garantia precária aderência pro impulso necessário pro corpo galgar mais um nível acima.

Uma vez vencido aquele obstáculo, findamos os demais blocos alcançando a beirada dum convidativo lago ao sopé duma queda, onde naturalmente nos presenteamos mais um merecido tchibum. O rio lançava seu furioso véu alvo do alto dum anfiteatro de basalto pra cair num belo lago cavado pelas águas. Após o mergulho continuamos a escalada, que agora se dava através das íngremes pirambeiras da encosta esquerda, quase verticais. O chão de terra lisa dificultava o avanço ao mesmo tempo que os dedos e pta dos pés tateavan as agarras necessárias á ascensão. Mas com jeitinho tupiniquim ganhamos mais um degrau e, de quebra, mais uma bela queda nos mesmos moldes da anterior. Percebi na pele o motivo da tradicional “Ferradura” se dar no sentido oposto, pois pra descer o íngreme vale basta jogar o peso á mercê da gravidade, coisa q no sentido contrário se torna penoso (e relativamente técnico) pela ausência de degraus e apoios, principalmente no trecho de encosta.

A subida prossegue pela pirambeira encosta onde finalmente intercepta a nova picada aberta, sinal q dali em diante já todos se sentem em casa. Um breve trecho de corda (desnecessária) marca a confluência das rotas e assim se ganha facilmente mais um degrau da bela sequência de quedas. Pois bem, daqui em diante a subida suaviza e passa pra margem direita do rio pois se dá basicamente caminhando, eventualmente se firmando nalgum tronco, rocha ou chão mesmo. Apesar da facilidade da subida, a mesma aperta pra gente mais pelo cansaço acumulado q pelas condições da rota. De qq forma o pior havia ficado pra trás.

Alcançamos o topo da Queda da Fumaça pouco depois das 16hr, horário adiantado em q a maioria da muvuca já havia retornado. Realmente fazia tempo que não via o topo daquela queda com pouca gente, pois as últimas vezes q ali pisara havia quase q “pegar senha” pra dar um passinho a frente! O sol mais ameno, a sombra da silhueta montanhosa começando a inundar o vale já era sinal q o dia terminava pra qq tipo de atividades. Ainda assim, a Thais fez questão de mais um tchibum no topo da queda, ou pelo menos tentou perante á agua gelada. De qq forma a paisagem da baixada de Cubatão cercada de verde vista daquela beirada de serra privilegiada já valia o esforço da árdua subida.

O retorno se deu na mais tranquila caminhada ao largo do Rio das Areias, eventualmente esbarrando nos retardatários dos demais grupos. Uma vez abandonando em definitivo a margem do belo curso dágua e começando o tradicional trecho de planicie da “Trilha do Lamaçal”, reparei na sola da minha brava bota Hi-Tec dando seu último suspiro. A bichinha já tava descolada faz tempo e realmente esta pernada seria sua despedida definitiva das roubadas, onde sua brava lealdade (e durabilidade) aos perrengues a fizeram merecer o funeral digno que lhe preparei ao chegar em casa.

Após a pitoresca “Torre dos Tênis” pisamos no asfalto na cia dos trocentos jovens vindos das picadas da região, ainda com tempo de observar o Astro-Rei cair atrás das montanhas. O busão não demorou em passar e amealhar td mundo q, espremido, contava suas inúmeras façanhas pela região. A maioria delas lorota, claro! E uma vez em Rio Grande da Serra eu e a Thais ainda estacionamos coisa de uma hora no boteco na frente da estação, descansamos, bebemoramos uma gelada e mastigamos um delicioso salgado antes do retorno definitivo pra Sampa.

Recapitulando, a tradicional “Ferradura da Fumaça” agora tem duas formas de ser efetuada em seu trecho mais critico, no caso, a descida final que precede o entroncamento dos vales: por trilha íngreme, porém segura, pela encosta de mato; ou ainda através da escalaminhada dos lisos blocos de pedras q margeiam o Rio das Areias. A picada facilita a vida de quem quer moleza, no entanto, passa longe de duas estupendas quedas. Fazendo o circuito no sentido contrario é a mesma coisa, com o diferencial que a ascensão do vale da Fumaça torna-se bem mais árdua pela forte inclinação. Não é impossível, mas tb demanda força e algum conhecimento técnico de escalada, se for efetuada evitando a agora bem-vinda (e oportuna) vereda da encosta. Claro que quem realmente conhece seus limites ou quer mesmo adrenalina já sabe de antemão que rota tomar. E independente se a ordem dos fatores altera ou não o produto, a aventura na “Ferradura da Fumaça” é sempre mais que garantida.

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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