O circuitão das Tartaruguinhas

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Rios acima do nível normal devido a chuva no dia anterior, tempo terrivelmente instável, chão traiçoeiro esfarelando sob nossos pés, apoios sensíveis e quebradiços ao mero toque e vara-mato por encostas tão íngremes qto espinhentas. Não bastasse, escalada exposta num paredão liso de quase 20m com uma cachu furiosa caindo do lado, quase lambuzando nosso cangote! Pois é, o que era pra ser apenas um programa sussa de vistoria da “Trilha das Tartaruguinhas” – vereda que interliga o Rio das Areias ao Rio Vermelho, tornou-se uma perrengosa aventurinha por conta das condições adversas impostas. Roteiro já relatado noutras ocasiões, eis a “Ferradura do Rio Vermelho”, via Tartaruguinhas, em sua versão pauleira!

A dúvida pairava do que encontraríamos pela frente naquela manhã. A ideia era um relativa e simples subida de vale já efetuada noutras 4 ocasiões, mas o diferencial agora era que naquela madrugada chovera tanto de dar inveja até Noé. Tanto que o rolê ficou “stand by” até última instante. “E ai, vai rolar? Agora ta chovendo..”, perguntou a Natachi pelo celular por volta das 22hr do dia anterior. Sem sequer pensar direito devido ás biritas daquela noitada respondi no ato: “Claro que vai, esteja lá no horário combinado! Mas prepare-se pro pior! Mas se tiver demasiado ruim a gente inventa alguma outra coisa! De qualquer forma o rolê não será perdido, te garanto!”, respondi, na convicção de que realmente decidiria na hora o que seria feito conforme as condições assim o permitissem.
E dessa forma, decididos a encarar o que der e viesse, saltei na cia da Natachi e da Thais no asfalto planáltico da SP-23, na divisa de Rio Grande da Serra e Paranapiacaba. O tempo se mostrava até mais convidativo do que minhas mais nefastas previsões alentavam, onde uma nebulosidade clara pairava no firmamento numa temperatura ambiente até agradável. Imediatamente nos afastamos da turba que descera do latão junto conosco, mas que tomaria outro rumo, a picada da Cachu da Fumaça.
Tranquilamente retrocedemos pela via asfaltada e tomamos a entrada que mergulha na vasta região planáltica que precede a borda serrana, e praticamente corre paralela á vereda da Cachu da Fumaça. Pra variar, o caminho era um brejo totalmente alagado e a tentativa de manter os pés secos não durou muito tempo. Não bastasse chapinhar com água até a canela, na sequência veio um trecho atípico de lamaçal que deixaria areia movediça de filme do Tarzã corada de inveja.  E lamaçal de tds as cores, consistências e formatos, desde marrom claro, escuro fétido, amarelo tijolo e esbranquiçado cal.
O chão ficou mais firme e compacto conforme nos aproximávamos da borda planáltica, no caso, ao desembocar nas manilhas de concreto do Rio Vermelho, por sinal acima do nível normal mas sem problemas de transposição. A mata aumentou de tamanho e tornou-se mais exuberante qdo pisamos no Rio da Solvay e o acompanhamos pela famosa trilha até dar no Lago Cristal, onde havia uma galera numerosa acampada. Dali em diante começou propriamente a descida do vale, na base de trilha, desescalaminhada e alternância das margens do rio. Foi ali que decidi que a descida do vale era possível, pois apesar dos rios mostrarem um volume dágua acima do normal, permitiam que a travessia entre ambas margens fosse feita de forma segura. Bastava estar apenas atento as mudanças de ânimo de São Pedro.
Após as Cachus Escondida e a Cascata dos Cristais (beneficiadas pelo véu dágua maior!), as paisagens se abrem revelando horizontes maiores com destaque pro Rio das Areias (sim,aquele da Cachu Fumaça!) despencando em varias lindas e volumosas cascatas a nossa frente! A descida pirambeira pelo vale dos Cristais transcorreu sem maiores intercedências, já q o acréscimo de água não afetara (nem escondera) os pontos de apoio/agarras necessários pra perda de altitude ocorrer em segurança. Conforme avançávamos o suor escorria farto pelo rosto, e o desejo de encostar nalgum dos vários poços do caminho logo virou vontade coletiva q logo seria suprida. “Calma, meninas! Já já vamos encostar num poço com cachu pra relaxar!”, avisei.
Dito e feito, após chegar na confluência dos rios, o chamado “Portal”, nos espremer pelo estratégico buraco que da acesso a parte baixa e escalaminhar mais uns rochedos, chegamos á Cachu  do Portal por volta das 11hrs, onde jogamos as coisas e nos presenteamos com descanso seguido dum merecido tchibum. Pra nossa sorte, havia apenas um quinteto de jovens nolugar, algo raro num lugar q em dias ensolarados fica cheio de gente. Na verdade, ali era o máximo q poderíamos nos dar o luxo de descer pelo rio, uma vez q com o tempo não se definindo era a margem mais segura de retornar em caso de tempestade súbita.
Pouco antes das 13hr retomamos jornada, agora dando início propriamente dito a subida do outro curso d’água. Retrocedemos então até o lugar onde o Rio Vermelho deságua no Rio das Areias, apenas alguns metros acima da “convergência” oficial. Dali já podia sentir a visível diferença que um pouco de chuva faz aquele outrora estreito e mirrado vale de pouca água: lindas e vistosas quedas como nunca havia visto e somente por presenciar aquela paisagem pouco habitual já tinha valido a pena naquele rolê, pelo menos pra mim.
Inicialmente escalaminhamos as lajes esverdeadas de limo neste inicio de trajeto até tropeçar com uma sucessão de cachus despencando, impossíveis de vencer frontalmente. Mas vasculhando na mata á direita há uma picada q embica forte encosta acima, e por ela ganhamos altura num piscar de olhos. Ali, a íngreme piramba exige fôlego redobrado das meninas. E atenção tb pois o chão de terra tava liso e escorregadio feito sabão em mais duma ocasião a Thais deu algumas derrapadas. Mas logo a vereda enton intercepta o q parece ser uma vala seca q cai encosta abaixo. E é por ela q desescalaminhamos um breve trecho até cair novamente no leito pedregoso do rio, agora num belo mirante rochoso situado no meio duma sucessão de belas quedas e com vista fantástica do vale. Pausa pra fotos deste que vos escreve e de descanso pras gurias.
Como aqui outra cachu vertical nos barrava  o caminho, a intuição nos leva à outra margem do rio onde a mata é menos espessa. Contornando a base dum enorme rochedo, tem início uma escalaminhada atraves duma íngreme e escorregadia encosta de terra, onde os apoios são poucos e o chão parece se esfarelar a cada paso dado. Qq matinho aqui serve como agarra e é preciso chutar o chão afim de criar um degrau como apoio, mesmo que fosse provisório. E lá fomos nos, subindo lentamente, tateando cada saliência, mato ou agarra na terra q sustentasse nosso peso de modo a dar o impulso sgte na ascensão. E devagar e quase parando, dando um passo e retrocedendo dois, fomos subindo até abandonar o ultimo trecho do barranco em beneficio do mato ao lado, que mostrou-se muito mais fácil de transitar.
Caímos então numa crista suave onde a declividade amansou, e onde bastou apenas tocar em meio a farta vegetação no caminho. Enqto isso frestas na vegetação a nossa direita revelavam o lindo e generoso véu alvo da queda que desviávamos.
Mas não tardou a declividade apertar novamente e trombamos com outra piramba maior, que demandou surge esforço redobrado quase que similar aquela anteriormente vencida. E tome procura de raízes, galhos ou qq mato q servisse como agarra, sempre acompanhando o rio à nossa direita, meio distante. A Natachi não escondia seu nervosismo e preocupação pela situação atípica q ali vivenciava: vara-mato! Cada planta q segurava não parecia firme, assim como td lugar pisado parecia se desfazer abaixo de suas botas, deixando ela sempre na rabeira do intrépido trio. Mas firme e forte a guria segueiu em frente!
Uma vez no alto reparamos q os gdes abismos e muralhas já haviam sido deixados pra trás e assim voltamos ao leito do rio, onde a escalaminhada simples teve continuidade, desimpedida, pelas pedras e até pela água, afundando a perna até altura da coxa. Desviando das quedas e poços a intuição nos leva novamente a margem direita do rio, onde o avanço é mais ágil. Mas não tarda a despontar outra queda vertical barrando nosso caminho, nos forçando outra vez a ir pra margem esquerda. Ali, ao lado da queda é preciso procurar bem na mata um estreito túnel de vegetação que contorna a queda. E ali, engatinhando feito animais nos pirulitamos naquele mocó de onde ninguém saiu isento de mato, folhas e terra. “Uma aranha!!”, sussurra a Natachi, mas sabendo que o bichinho era a menor de suas preocupações. O ultimo trecho de mato era além de espesso bastante repleto de espinhos, o q demandou um pouco flexibilidade do corpo na hora de escalaminhar o ultimo trecho daquele setor agreste. Ainda assim, tds sem excessão levaram alguma furada dos maleditos nalgum canto do corpo.
Novamente no leito do rio bastou apenas avançar na base da caminhada simples apenas desviando dos pelos poços acobreados do trajeto, na mesma medida em q o som furioso de uma gde queda se fazia audível aos ouvidos. Mas eis q numa curva descortina-se com td sua imponência o q seria o maior desafio daquele dia. Estávamos num poção ao sopé da “Cachu do Rio Vermelho” (tb conhecida como “Cachu dos Grampos”) q, dividida em 3 patamares sucessivos lançava suas águas de uma altura de mais de 20m!!! O volume dágua da queda realmente lhe conferia beleza sem precedentes, e foi ai que realmente titubiei se realmente conseguiríamos escalar a queda na unha, naquelas condições. Claro que antes de dar continuidade a ascensão, seja ele como fosse, nos brindamos com um momento de descanso ao sopé daquela maravilha da natureza, enqto eu avaliava mentalmente as opções descortinadas a nossa frente.  O fato foi que nem dei chance das meninas, que olhavam a queda boquiabertas, decidir. Na demora, eu mesmo q tomei a decisão por elas. Iriamos escalando e seja o que Deus quiser!
Assim, após democraticamente decidido, fizemos o sinal da cruz quase que simultaneamente, respiramos fundo e lá fomos nós! Já logo de cara tivemos q chapinhar cautelosamente por águas correndo com relativa força de modo a passar pra margem direita, tateando bem o chão antes de jogar todo peso nele. Na sequencia tivemos q escalaminhar um pequeno (e nem alto) trecho de pedra que em condições normais não oferece nenhum desafio por sempre se encontrar seco. Não era o caso, pois naquela ocasião naquele curto pedaço agora vertia muita água, demandando cuidado redobrado na busca de agarras e apoios firmes pra impulsionar o corpo td pro patamar sgte. Logicamente que neste pedaço (e nos sgtes) as meninas tiveram alguma dificuldade. Mas como não havia pressa fomos vencendo e avançando as provações calmamente, sem estresse algum.
No patamar sgte bastou desviar de um simpático laguinho represado pela direita, onde tarde demais me passou despercebida a entrada no mato pra subida da queda pela encosta direita, sem necessidade de escalar o paredão. “Ahhh, agora já foi! As meninas vão subir pela parede por bem ou por mal..”, pensei comigo mesmo. Sempre na dianteira e as gurias seguindo meus passos e copiando cada movimento, escalaminhamos o primeiro nível com certa facilidade, passando pro segundo nível de paredões, um pouco maior que o primeiro, onde o borrifo úmido da cascatona já começavam a nos ensopar por completo! Fora isso, as meninas parecia q se sentiam no game do Super Mario Bros ao vencer etapas e obstáculos consecutivos. Mal sabiam que o que viria era mais pauleira que o gorilão do jogo da Nintendo.
Dali encaramos enfim a ascensão final, aos poucos, no mesmo esquema anterior, agora com praticamente uma furiosa  queda do nosso lado tentando lambuzar a gente! O terceiro nível é o maior e mais exposto de todos, e o problema é q ali já se ganhou altura considerável e qq falha é queda livre na certa. Voltar é tão impensável como inviável, logo o jeito é apenas focar pra cima e evitar olhar pra baixo! Desnecessário dizer q este trecho demandou sangue frio e superação das meninas, principalmente da Natachi, que áquela altura já ria de nervoso sem acreditar naquilo q tava fazendo. Teve momentos em q ela travou, mas graças a ajuda da sempre prestativa Thais a retada moça foi ganhando terreno naquela parede tão alta qto úmida. Enqto isso a famosa Cachu do Rio Vermelho lançava seu véu alvo com toda sua vazão bem do nosso lado, imponente! E a gente subia aos poucos apreciando cada detalhe de td seu esplendor enqto tateávamos agarras e saliências pra seguir adiante.
Após um tempo q pareceu interminável, consegui respirar aliviado qdo dei de cara com os grampos fincados na rocha, sinal de q já estávamos praticamente no alto e em segurança. Claro que áquela altura tds nos estávamos totalmente molhados, da cabeça aos pés pelos respingos da queda. Até q finalmente fincamos os pés no topo da Cachu do Rio Vermelho (ou dos Grampos), com uma felicidade impar que so quem já passou pela experiência saberá reconhecer. Estávamos principalmente contentes por vencer aquela provação pra lá de adrenada pq a partir dali o restante da trip seria na horizontal, em nível, no topo da serra. Como se fosse tudo minuciosamente calculado, foi só chegar no topo q o tempo fechou totalmente e brumas espessas nos privaram de apreciar a bela paisagem que se tem do mirante rochoso da queda.
Dali em diante bastou abandonar as águas rubras do Rio Vermelho através duma bem-vinda e oportuna picada q nasce do alto da queda e se pirulita mata adentro, sempre na direção nordeste. Essa é a picada que serviu de pretexto pra pernada da vez, a “Trilha das Tartaruguinhas”, vereda que interliga a queda supracitada á da Fumaça, já no Rio das Areias. Caminho sussa, batido, inconfundível e bem tranquilo q nem se comprava ao perrengue de horas antes. Com poucos obstáculos, no caso, q se resumem a um correguinho, uma ou outra árvore tombada e algum trecho liso de barro, aquilo lá era uma avenida asfaltada comprada ao percorrido até então.
Em menos de 10minutos desembocamos nas clareiras repletas de restos de acampamento e lixo que assinalam o Córrego das Tartaruguinhas, onde uma simpática cascatinha despeja água num pocinho e alguns bichos-grilos fumam seu baseado ou tocam flauta. Descendo um pouco pelo riozinho logo caímos na queda maior do córrego e, finalmente, desembocamos no Rio das Areias, onde foi só retomar a tradicional picada da Fumaça, só que no sentido contrário. “Falta muito?”, perguntava a Thais, já dando sinais de cansaço, por sinal, esgotamento  partilhado por todo mundo, inclusive por este q vos fala. Pois é, já to ficando velho pra esse tipo de aventurina mais desgastante.
Após chapinhar interminavelmente no rio e chafurdar ainda mais na lama fétida durante td retorno, finalmente pisamos na famosa “Torre dos Tênis”, já as margens do asfalto da SP-23. Por sorte o latão não tardou em passar e voltamos num coletivo lotado de gente que tb retornava das demais quedas locais. Em Rio Grande da Serra nos presenteamos com o ritual obrigatório de todo final de rolê: a sagrada bebemoração! Brinde mais que merecido, diga-se de passagem, uma vez que o bate-volta tinha sido bastante proveitos pra todo mundo, embora que por motivos diferentes. Pra mim, o tempo ruim e alta vazão das quedas descortinava uma faceta pouco conhecida dum vale já palmilhado vezes sem conta; pras meninas, da consciência não somente da superação dos próprios limites, mas de sentir na pele que desafios são o que tornam a vida interessante e superá-los é o que torna a vida com significado.
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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