Arca sem Noé na Serra da Prata

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O dilúvio começou às 14:00 horas do dia 10 de março de 2011, uma quinta feira, para os habitantes de uma estreita faixa do litoral paranaense. Durante a noite a chuva se intensificou e no dia seguinte as encostas da Serra da Prata vinham abaixo carregando toneladas de lodo, pedras, árvores e tudo o que por azar estava no caminho da enxurrada. Na Estrada da Limeira, início da trilha para a Torre da Prata, Seu Jaime viu o calmo riacho subir até tomar a estrada, o pátio e inundar a casa. Homens e animais ficaram ilhados numa elevação do terreno para mais tarde serem resgatados por helicóptero. Foi um dilúvio sem Noé.

Cansados de perrengue e com disposição para exercitar as pernas, resolvemos tirar o fim de semana para um passeio sossegado sem mapas, bússola ou facão. Desci a BR277 acompanhado pelo Moisés Lima e o Paulo Marinho, tomando a Estrada da Limeira no pé da serra, depois de três vezes cruzar o rio a vau, estacionamos o carro no pátio, em frente à casa abandonada do Seu Jaime que veio nos receber no portão com a gentileza de sempre. Com a velha casa interditada pela Defesa Civil, construiu casa nova no alto do barranco em que ficou isolado durante a tempestade e com orgulho ingênuo nos levou a conhecer enquanto relatava as agruras vividas naqueles dias.

O riacho escondido pela vegetação de galeria se transformara num amplo vale nu e raso, assoreado de saibro amarelo e pedras sem limo, retificado pela força irresistível da natureza em fúria. No Picadão do Burro, com sua majestosa floresta, já aparecem as marcas da tragédia. Grandes deslizamentos, feridas expostas à esquerda e a direita. A mata é invadida pela luz solar que penetra fundo no bosque antes sombrio e misterioso. Mas é na aresta que antecede os trepa pedras que o cenário fica dramático. As imensas crateras chegam a centímetros do caminho e por pouco, muito pouco não destruíram toda a aresta, de ponta a ponta. As encostas, em ambos os lados, tornaram-se pastosas e desceram em avalanche engolindo árvores e pedras até onde a vista alcança.

Um ano e meio depois nada ainda cresceu na ferida amarelada que lentamente avança para tragar o pouco terreno que restou intacto na fina linha de crista. Não aconteceu de forma lenta e gradual como imaginamos os processos geológicos. Tudo desabou num só golpe, com diferença de minutos ou segundos para as encostas opostas e separadas por poucos metros. Com barulho ensurdecedor e tremor de terra, muitos iriam borrar as calças se isto tivesse acontecido num final de semana.

Somente do cume é possível avaliar o tamanho aproximado da encrenca e o riacho antes sinuoso e invisível debaixo das árvores se mostra retilíneo, pelado e devastado. Quer gostem os ambientalistas ou não, esta é a dinâmica do planeta desde o início dos tempos. A natureza se constrói e destrói continuamente sem precisar de nossa ajuda, totalmente indiferente aos nossos atos e vontades. É muita petulância desta gentinha miúda acreditar que podem, com leis e palavras, conservar uma paisagem. Melhor reaprenderem a rezar como faria o mais cético ateu que estivesse descendo a montanha naquela hora.

Dizem que o prazer do montanhista está em sentar no cume e tirar as botas. Garanto por experiência própria que é a pura verdade, mas tem outros e ler as anotações deixadas no caderno é um deles. Existem os relatos apaixonados, os sofridos e os hilários. Quanto mais o sujeito se fodeu para subir, maior a recompensa e os agradecimentos ao Altíssimo. É quase unanimidade que no cume a fé se renova e o mundo fica belíssimo, mas a culta e bela língua pátria sofre tortura atroz a cada página folheada. O que fica registrado nos cadernos de cume diz muito de nosso povo e principalmente de nossos gloriosos montanhistas.

Existem aqueles bem família que levam os filhos; “Esta é a 5ª vez que venho a este lugar sagrado. Pela 1ª vez com dois malas (filhos) sem alça e sem rodinhas. Reclamaram, choraram e fizeram birra, mas aqui estão” declama todo orgulhoso o papai urso e a resposta não tarda; “Caralho! Que montanha fdp e fiquei com um medo da porra, pisei em lama, passei por cobra e passei frio graças ao fdp do meu pai, mas valeu, no fundo pensando um pouco mais, eu gostei!” E a sogra, alguém em sã consciência levaria a sogra para escalar a Torre da Prata? Pois o desnaturado Índio Sexta Feira (Ivon César Sales) levou e se foi uma tentativa de sogrecídio não deu certo. Parabéns aos dois!

Não faltam os exibidos que jamais perdem oportunidade para se auto afirmarem perante o mundo; “Hoje pela 43º vez na Prata, mais uma conquista…”, ou “Meu nome é Fulano e subi na Serra da Prata no dia tal porque sou guerreiro…” Os perfeccionistas chegam aos detalhes; “Acordei bem cedo e vi que tava fechado e voltei dormir. O Fulano ligou mais tarde e disse que tava abrindo. As 8:30 levantei e liguei pro Beltrano e ele topou de vir. Saímos de Curitiba as 10, quase, e chegamos na fazenda as 11:10 e já 11:15 começamos. Agora são 15:10. Tá um friozinho e vento animal, e não podemos permanecer muito aqui, senão pegamos noite na volta. Pretendemos chegar lá embaixo antes das 18:00.” Então tá!

Tem o engajado por uma boa causa; “Diga não a retirada das placas do Ciririca!!!” e o espirituoso; “1ª vez na Torre da Prata – bati meu recorde de tempo (nesta montanha)” e também “mais uma vez curtindo esse maravilhoso momento, pois se existe um paraíso é aqui e no quarto da minha namorada…” ou “Quero deixar um abraço a todos, principalmente a todas as gatas que por aqui passaram. Desejo que Deus me abençoe e proteja meu trabalho e que eu case com uma gata de olhos azuis parecida com a Ana Paula Arósio!” Além dos carentes que deixam telefone, e-mail, endereço e blog para aumentar exponencialmente os amigos no facebook.

Os apaixonados formam uma classe à parte; “Querido Vita! Por toda minha vida você foi a inspiração para estar próxima a natureza, amando as montanhas. Obrigada!” Dulce, abra os olhos porque tem concorrência. Os desiludidos destilam suas mágoas; “Gostei de uma garota por 10 anos, pensei até que nunca (a) iria esquecer, mas aprendi que não é bem por aí. Às vezes desejamos demais algo ao qual não devíamos ter assim tão desejado!…Mulher assim como dias melhores (sempre) virão.”

Os agradecidos; “me sinto uma pessoa realizada, deixei toda a tristeza do mundo para trás, agora eu sei o que é viver, sentir o prazer de desfrutar esse paraíso,….acredito que nunca me senti uma pessoa tão feliz como hoje. Se eu morrer sei com certeza que morrerei feliz.” E “Só podemos agradecer a Deus por ter nos acompanhado até aqui, e que nos proteja no retorno!”

E os mal agradecidos; “Depois de 12 hrs de caminhada, + de 3 hrs perdido na trilha por culpa dos meus guias, Siclano e Beltrano, depois de parar mais 500 vezes por falta de água e competência do Beltrano, pois ele quase teve um infarte de tanto camelar…choveu a noite e molhou nossa cabana, mas não dá nada, nosso amigo Siclano já subiu 6 vezes com essa, Beltrano 2 com essa e eu é a primeira da última.” E os mal educados; “Puta que la merda, ô montanha mais fudida…”

Aqueles que fazem a história; “Estive aqui pela 1ª vez – emocionante – com a 1ª alemã q. chegou no cume da Serra da Prata…” e os que deixam lixo; “Estou feliz, levo recordações e deixo a minha recordação na Torre da Prata; a minha camisa do Corinthians presa a uma árvore bem alta.”

Alguns fazem ameaças disfarçadas no papel de autoridade; “Lembre-se que você está pisando num Parque Nacional, isto quer dizer que você deve cuidar do que é seu, ou seja: Não corte a vegetação, não faça fogueira, não deixe lixo, curta a paisagem, sinta-se dono deste lugar e volte sempre! Praticando essas regras nós iremos provar que não há necessidade de restringir a visitação” e outros que nem disfarçam; “maldito seja aquele que lutar com a palavra do Senhor, e maldito aquele que negar estas coisas, pois a ele não mostrarei coisas maiores, diz Jesus Cristo, porque eu sou aquele que (vos) fala…”

Mas a verdadeira pérola, a cereja do bolo; “Trilha em boas condições, porém necessita de manutenção. A 1ª descida do vale com vários pontos com erosão”, parece brincadeira, mas o cara estava falando sério e escreveu esta barbaridade apenas 3 meses após a serra quase vir abaixo. É reflexo da doutrinação salvacionista do ambientalismo politicamente correto pregado a exaustão dentro de certos meios. “Livra-me dos chatos e Te agradecerei, oh Senhor” (Dalton Trevisan).

No Picadão do Burro ligamos as lanternas e pouco depois encontramos o Seu Jaime nos aguardando no portão para esticar a conversa. Queixou-se da trombose na perna e depois contou da onça pintada que atravessou o quintal assustando os cães e da briga no boteco, onde hoje é a igreja, em que pai e filho batiam num Fulano até que por acidente o pai matou o filho com uma paulada e Fulano decepou o nariz do pai com o facão, mas a história não termina por aí e em outra ocasião conto o resto.

Fotos: Paulo Marinho

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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