Wolverine do Neblina

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Durante um período, costumava viajar no início dos anos ímpares para conhecer as montanhas amazônicas. Tentávamos formar grupos grandes, com cinco ou seis pessoas, para diluir o custo de deslocamentos tão longos e logísticas tão complexas. No caso do Neblina, o Tenente Côrtes chefiou nosso grupo.

Estávamos no aviãozinho rumo a São Gabriel da Cachoeira, porta de entrada para o Neblina. Foi quando vi a bordo alguém muito parecido com aquele herói de gibi, o Wolverine. Era uma moça, mas não uma heroína de saias, pois estava de short.

Calha do Rio Iazinho, Afluente do Cauaburi, Neblina, AM

Claro que não tinha as costeletas ou as garras do Wolverine. Mas no tamanho pequeno, no aspecto compacto e na camiseta com furos que pareciam de balas, lembrava muito ele. Chamava-se Diana Navarro, pertencia ao Clube Alpino do Canadá e estava investigando novos desafios.

Seu plano era partir com uma equipe de Minas que deveria chegar em poucos dias. Mas nós a convidamos para juntar-se a nós, afinal quem não quer a proteção de uma X Woman? No nosso grupo havia um rapaz mineiro, Marcelino Morais (que você encontrará em outros relatos), que sabia daquela excursão.

Serra do Cadorna vista da Bacia do Gelo, Neblina, AM

Diana era forte, positiva, rápida e incansável. Foi ótimo tê-la conosco pelos nove dias necessários para alcançarmos o Rio Tucano, pousarmos nos cinco acampamentos dentro da Floresta Amazônica e dormirmos a 3.000m no topo do Neblina. Na realidade, o Neblina é apenas uma longa subida por aderência, com um pequeno trecho crítico inicial.

Sim, nós dormimos lá em cima, subindo com as barracas necessárias. Além do isolamento no alto de uma montanha especial, pudemos usufruir de sua vista estupenda. Ela se torna enevoada a partir do meio da manhã, portanto é normalmente inacessível aos que sobem e descem no mesmo dia.

Pôr do Sol no Pico da Neblina, AM

Por incrível que pareça, existe água no interessante colo que vai ao Pico 31 de Março. Desta forma, pudemos cozinhar sem problemas. Acho infeliz o nome dado a esta montanha e não consegui descobrir seu equivalente indígena. Já o Neblina é chamado pelos yanomamis de Yaripó – morada do trovão ou casa dos espíritos, tão mais sugestivo.
O tempo estava perfeito mas, na volta, ao atravessarmos a trabalhosa Bacia do Gelo, fomos surpreendidos por uma terrível tempestade. Essa é uma estranha depressão em solo argiloso, povoada por palmeiras. Ela sai do Garimpo do Tucaninho e vai dar diretamente na parede do Neblina.
Entre troncos, buracos, raízes e valas, Diana acabou quebrando o pé. Ela não estava acostumada com o terreno irregular e com a vegetação interferente. A noite que passou gemendo pendurada na rede do Garimpo do Tucaninho (já por si um lugar sinistro) foi medonho.

No dia seguinte, o Tenente Côrtes e o garimpeiro Cobal a transportaram nos cestos que o povo local leva às costas. Cobal era uma empresa alimentícia estatal – o apelido se deveu à absurda carga que ele era capaz de transportar. Estes cestos, chamados jamanxis, são curiosamente parecidos com os dos sherpas do Nepal. Ela chegou antes ao rio e retornou a São Gabriel em um de nossos dois barcos, com nosso piloto principal.

Pico 31 de Março, visto do Neblina, AM

Os barcos tinham ficado sob a proteção de um sujeito louro apelidado de Alemão. Ele devia ser a única pessoa clara da tribo. Não sabia navegar, mas resolveu dar uma volta e detonou o pino de fixação do motor. Não poderíamos voltar sem improvisar outro: simplesmente passamos duas horas limando um prego grosso contra as pedras da beira do rio, até que encaixasse.
Se nós o perdêssemos nas águas, ficaríamos à deriva e à mercê de algum viajante, naquele rio deserto e revolto. Tínhamos um péssimo piloto, nós o chamávamos de Idi Amin, aquele violento ditador de Uganda. Apesar de outra tempestade horrorosa, conseguimos chegar bem em São Gabriel. Para mim, este trecho da viagem foi pavoroso. Encontramos Diana enfaixada como uma múmia.
Um mês depois, dei carona para um casal no sul de Minas. A moça comentou comigo por acaso de uma amiga sua que fora mergulhar em Ubatuba, mesmo com o pé avariado. Sim, era Diana Navarro, indestrutível como Wolverine!
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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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