Refazendo a História do Ferraria

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Esta leitura revela detalhes importantes de como era feita a marcha de aproximação do Pico Paraná; caminhada mínima de 25 quilômetros. Por isto uma escalada para aquelas bandas exigia quatro dias, pois o retorno era feito por Cacatú (porto fluvial), com serviço regular de barco de passageiros. Uma vez em Antonina, havia a opção de trem ou do ônibus, pelo Expresso Azul.

Escreveu-nos o “Dr. Mendes”, apelido do Herbert Becker, veteraníssimo marumbinista, reclamando da não inclusão de seu nome no rol dos conquistadores do Ferraria em 5 de abril de 1950. Foi bom porque nos proporcionou uma cópia do texto da própria lavra do Becker, inserido nos órgãos de imprensa daquele tempo. Pela importância histórica reproduzimos na integra. 
 
Conta ele que: 
“Em março de 1950, tomávamos o tradicional chimarrão na casa do Stamm (1), quando aparece o Gavião (2) com a idéia de escalarmos o Ferraria antes que outros o fizessem. Stamm alertou sobre as dificuldades para se chegar ao sítio do Belisário Armstrong (3) em uma caminhada de 25 quilômetros desde o Elpídio (4), na Graciosa. Para retorno teríamos de enfrentar a trilha de muares para Cacatú (5). Nobor Imaguire que participou dos informes preliminares, topava qualquer decisão. 
 
Realmente, no dia aprazado, encontro na Praça Tiradentes, onde o Gavião nos esperava com um caminhão conseguido não sei onde. Deixou-nos no Elpídio. Muita dificuldade na marcha dos 25 quilômetros, pela chuva que caíra dias atrás. Ao entardecer chegamos ao sítio do Nhô Beleza (6). Participamos do jantar familiar, onde serviram um bom frango caipira com arroz.
 
Trouxemos presentes para a rapaziada. Para pousada nos cedeu a sala da casa e cada um se ajeitou da melhor maneira possível no assoalho. No dia seguinte estávamos todos duros e com dores nas costas por dormir naquelas tábuas duras (madeira de Imbúia) e como disse depois o Stamm, “Pelo menos fossem tábuas de madeira mais mole”.
 
O tempo, no dia seguinte, estava ótimo. Saímos do sítio do Belisário e embocamos rumo à estrada das tropas (5), que vai dali para Cacatú. Este caminho é o pior que conheci até agora. O barro vai até o tornozelo e isso por quilômetros e mais quilômetros, sem dar folga.
 
Depois que andamos por um bom trecho, mais ou menos por uma hora, o Gavião encontrou uma saída da estrada para iniciarmos a escalada. O mato estava completamente fechado e tivemos de abrir uma picada para podermos passar, o que atrasou muito a escalada, além de cansar demasiadamente. Quando acerta altura ficamos um pouco para trás, o Stamm resmungava e dizia: “Eu não te disse, Dr. Mendes, que a coisa não era sopa”.
 
E tinha razão de sobra, pois quando chegamos próximo ao topo do ferraria, já passava das 15 horas e tínhamos que voltar para o caminho das tropas antes da noite ou posar no mato, o que não estava em nossos planos. Por sorte nossa, não estávamos mais muito longe do topo, o qual em seguida alcançamos.
 
Fizemos aquele “haliôôô” pela conquista deste pico. Batemos algumas chapas (fotografias) e voltamos o mais rápido possível, chegando a estrada das tropas ao anoitecer. Daí até as obras da Usina de Cacatú (7) foi relativamente rápido, pois a estrada gradativamente ia melhorando à medida que nos aproximávamos do Cacatú, o que facilitou muito a caminhada. Na passagem do Rio Cacatú (8) tivemos um pouco de dificuldade, devido a escuridão, mas enfim varamos o rio sem problemas.
 
Chegando ao canteiro de obras de Cacatú (9), procuramos o encarregado e conseguimos quarto para pousar e descansar nossos esqueletos, além de sermos convidados, e isso com muito prazer, para participarmos do jantar junto a turma, o que muito nos agradou, pois havia feijão, arroz e carne assada, o que para quem vinha passando a pão e água, foi um maná.
 
Depois da janta ainda fomos convidados para participar de um fandango (10) na casa de um dos moradores da região e lá chegando o Stamm encontrou velho conhecido, que nos proporcionou uma recepção calorosa. Dançamos e nos divertimos à bessa, tomando cachaça e cerveja gelada. Quem iria imaginar tudo isso lá no meio da mata da Serra do Mar?
 
Quando voltamos ao alojamento já era madrugada. No dia seguinte apanhamos uma embarcação (lotação) que nos levou pelo Rio Cacatú até o porto de Antonina, numa viagem gostosa.
 
Em Antonina, apanhamos o trem da tarde, que nos levou de volta a Curitiba. Estávamos todos contentes por termos incluído mais uma escalada dentro de tantas outras que efetuamos e diga-se à parte, essa foi uma das mais importantes, pois trata-se de um dos picos mais altos daquela serra (11)”.
 
 
 
 
Publicado na Gazeta do Povo, 21 de junho de 1997
Protagonistas: Rudolf Stamm, Waldemar (Gavião) Bucken, Herbert (Dr. Mendes)Becker e Nobor (Lanterna) Imaguire.
Locais visitados: Estrada da Graciosa, sítio do Belisário Armstrong (3), Picada do Cristóvão, Pico do Ferraria, Bairro Alto e Antonina.
Data da aventura: 5 de abril de 1950
Referencias explicativas:
   (1) Rudolf Stamm
   (2) Waldemar Bucken
   (3) Fazenda Pico Paraná, Dílson
   (4) Parada de ônibus no alto da Graciosa, perto da Casa de Pedra (Garbers).
   (5) Picada do Cristóvão, com destino a Bairro Alto e foz do Rio Cachoeira.
   (6) Belisário Armstrong
   (7) Usina velha, dos aquedutos e piscina dos elefantes. Anterior à Parigot de Souza.
   (8) Talvez o Rio Cachoeira
   (9) Talvez em Bairro Alto
 (10) Dança caiçara marcada pela batidas dos tamancos de madeira sobre o assoalho.
 (11) Ibitiraquire
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Sobre o autor

VITAMINA – Henrique Paulo Schmidlin Como outros jovens da geração alemã de Curitiba dos anos de 1940, Henrique Paulo foi conhecer o Marumbi, escalou, e voltou uma, duas, muitas vezes. Tornou-se um dos mais completos escaladores das montanhas paranaenses. Alinhou-se entre os melhores escaladores de rocha de sua época e participou da abertura de vias que se tornaram clássicas, como a Passagem Oeste do Abrolhos e a Fenda Y, a primeira grande parede da face norte da Esfinge, cuja dificuldade técnica é respeitada ainda hoje, mesmo com emprego de modernos equipamentos. É dono de imenso currículo de primeiras chegadas em montanhas de nossas serras. De espírito inventivo, desenvolveu ferramentas, mochilas, sacos de dormir. Confeccionou suas próprias roupas para varar mata fechada, em lona grossa e forte, cheia de bolsos estratégicos para bússola, cadernetas, etc. Criou e incentivou várias modalidades esportivas serranas, destacando-se as provas Corrida Marumbi Morretes, Marumbi Orienteering, Corridas de Caiaques e Botes no Nhundiaquara, entre outras. Pratica vôo livre, paraglider. É uma fonte de referências. Aventureiro inveterado, viaja sempre com um caderninho na mão, onde anota e faz croquis detalhados. Documenta suas viagens e depois as encaderna meticulosamente. Dentro da tradição marumbinista foi batizado por Vitamina, por estar sempre roendo cenoura e outros energéticos naturais. É dono de grande resistência física e grande companheiro de aventuras serranas. Henrique Paulo Schmidlin nasceu em 7 de outubro de 1930, é advogado e por mais de uma década foi Curador do Patrimônio Natural do Paraná. Pela soma de sua biografia e personalidade, fundiu-se ao cargo, tornando-se ele próprio patrimônio do Estado, que lhe concedeu o título de Cidadão Benemérito do Paraná.

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