O Castelo de Caieiras

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Caieiras está situada a 40km da Grande São Paulo e sua historia é fortemente ligada à Cia Melhoramentos. Contudo, antes da empresa trazer o desenvolvimento á região, a produção de cal era intensa e escoada pelos trilhos da “E.F. Perus-Pirapora”. Sem nada planejado retornei então á Reserva Florestal Alfredo Weiszflog, a “Reflora”, afim de andarilhar por veredas do setor sudeste, situadas aos pés da Serra do Tico-Tico, numa breve pernada de menos de 15kms que partisse de Perus e fosse até Caieiras. Pra minha surpresa, trombei com o lendário forno de cal que inspirou o nome do município, patrimônio histórico inestimável similar aos “Fornos de Ponunduva”, de Cajamar. Com um diferencial significativo: este quase “castelo medieval” está bem melhor conservado.

Desembarquei em Perus por volta das 9hrs naquela manhã de domingo, dia especial de eleições municipais. Vale salientar que meu transporte foi um dos novos trens da CPTM e fica aqui meu registro de que realmente são muito bons: modernos, com menos bancos pra otimizar passageiros em pé e com fácil trânsito pelos vagões decerto terá a aprovação da legião de ambulantes que diariamente vende suas tralhas ilegalmente na malha ferroviária.

Pois bem, da Estação Perus toquei pra noroeste até o alto do viaduto, cruzei a entrada (sempre aberta) duma propriedade que bordeja o pé dum morrote bem baixo, tangenciando uma casa abandonada pela direita e a antiga fábrica Portland pela esquerda. Aqui alguns pulguentos podem latir de forma estridente na sua direção mas basta ignorá-los e seguir em frente, sempre pra oeste. Agora numa estradinha de terra, passo pela antiga vila operária da fábrica sempre acompanhando o caminho principal, que no final se transforma numa vereda. Trilha esta que basicamente segue o que sobrou da antiga linha férrea da “E.F. Perus-Pirapora”, tendo um fétido Rio Juquery marulhando bem do lado.

Aquela manhã se apresenta relativamente com boa visibilidade apesar da presença de nebulosidade esparsa aqui e acolá, permitindo avistar, após passar sob o viaduto de Rod. dos Bandeirantes (SP-348), o verdejante serrote que abrange o Morro da Pedreira. O passo é rápido e a pernada prossegue desimpedida pela tranquila vereda, cruza algumas casinhas de alvenaria sem sinais da criançada da última vez que passei pro aqui, coisa de quatro meses atrás.

Logo adiante desemboco numa estrada de chão maior, abandono os trilhos e prossigo pela via principal, pro norte. Após andar um tanto pela poeirenta estrada de chão, cruzar a ponte concretada sobre o Rio Juquery e andar outro tanto, abandono a via principal em favor duma discreta vereda que acompanha a linha de torres de alta tensão. Na verdade esta é uma via de manutenção e nela me mantenho durante um bom tempo, no aberto, agora tocando pra oeste. Aqui agora na entrada colocaram uma cerca pra evitar o acesso das bikes (antes era aberto) mas nada que uma agachada por entre os fios não resolva.

Ganhando altitude então suavemente pela tal vereda num chão tão avermelhado, escorregadio e repleto de buracos, não tarda pra abandonar a vereda por outras nascendo ela lateral. Esta se embrenha num belo bosque de reflorestamentos pra depois palmilhar a encosta do serrote, agora oferecendo vista generosa da Serra do Tico-Tico. Dali foi só descer um suave vale ao sopé do serrote, onde me deparei com uma encruzilhada bem conhecida e bastante significativa, pois todas as vias que se ramificam dali levam a setores bem diferentes da região. 

Como minha intenção era dar um visu no setor sudeste bastou seguir reto pois, em tese, já me encontrava dentro da “Reflora”, nome como é popularmente conhecida a Reserva Florestal Alfredo Weiszflog, de propriedade da Cia Melhoramentos. A larga vereda então, antes de terra ou avermelhada, dá lugar a um precário chão cascalhado. E conforme se ganha altitude as vistas a sudeste vão se alargando, permitindo apreciar todo caminho feito até então. Vale destacar também que a encosta esquerda do morro é composta de pura rocha, mas a vegetação se empenha forte em se levantar pra ver a luz do sol agarrando-se fortemente ás pedras.

Placas indicando “Área de risco. Detonação. Não ultrapasse. Abrigue-se ao toque da sirene” são indicativos de que já me encontro nos limites da Mineradora Pedrix. Mas logo depois está o tradicional mirante na beirada do alto da pedreira, com belo visual daquela intervenção humana no morro em forma duma cratera gigantesca. E ali, por volta das 10:30hrs faço minha primeira parada pra descanso no topo daquele mirante rochoso com vistas largas de todo quadrante leste. Da direita pra esquerda é possível avistar o Pico do Jaraguá, a Serra da Cantareira, o Ovo da Pata (no Juquery) e o Cristo de Caieiras, este coroando um serrote desgarrado da Serra do Tico-Tico, ao norte.

Descansado, voltei a minha pernada agora tocando pro norte pela continuidade da precária via de chão, ignorando a trilha que sobe o Morro da Pedreira, picada que já relatei detalhadamente noutra ocasião. Descendo suavemente não deu nem 5min de caminhada que trombei com uma vereda que, bem discreta porém identificável a olhos treinados, se pirulitava pela mata a minha direita. Qual minha surpresa que ela desembocou as margens do setor sul da pedreira, com nova perspectiva da mesma. Com o mato logo dando lugar a lajes e aderências de fácil trânsito, é possível se deslocar alo largo do alto da enorme cratera e ter novos visus da dita cuja.

Tornando a via principal, continuo minha jornada rumo norte, agora adentrando num lindo bosque de pinheiros e araucárias onde só faltou um Bambi cruzar meu caminho pra completar aquela paisagem bucólica. Tangencio a tradicional placa de madeira da reserva e logo o cenário se torna repleto de reflorestamento de eucaliptos a minha volta. Ao som do farfalhar do arvoredo se misturam rugidos de veículos bem próximos, sinal evidente que meu trajeto corre paralelo á Rod. dos Bandeirantes (SP-348), não muito longe de mim. No trajeto, um enorme lagartão que mais parecia coadjuvante do filme “Jurassic Park” se bronzeava no meio da via e aparentou se sentir incomodado pela minha súbita presença, mergulhando colericamente no mato.

Ignorando duas grandes bifurcações a minha esquerda, minha rota começou a descer bem forte com bons visus do setor nordeste. No entanto, uma curiosa estrutura que parecia um castelo no meio do mato despertou minha atenção, do outro lado da rodovia. E era pra lá que eu deveria ir. Como não portava mapa ou croqui, o jeito foi me guiar pela bússola e confira no meu faro de direção, que por sorte ainda mostra-se mais eficiente que equações ou algoritmos. Num piscar de olhos a vereda desembocou as margens do asfalto, cruzei uma porteira trancada da Melhoramentos (que tem uma variante que prossegue pro norte) e cruzei a rodovia por um enorme vão sob o asfalto.

Do outro lado tropecei com um portão de madeira fechado, uma decrépita guarita e o tal “castelo”, que logo deduzi ser um dos dois lendários fornos da Melhoramentos. Já tinha ouvido falar deles, de que estavam em propriedade particular e cujo acesso era somente com permissão, guiado e com gente da empresa. Gritei pra ver se havia gente na guarita e nada. Como eu tava ali, pouco antes das 13hrs, com acesso desimpedido e nada barrando minha entrada simplesmente saltei o portão e fui de encontro aquela bela ruina histórica que conta muito da região.

Feito uma fortificação medieval, três imponentes torres elevavam-se a margem da estrada, alocadas ao largo dum aprazível gramado. Sua história se mistura á de Caieiras e data de meados do século 19, quando o Cel. Antônio Proost Rodovalho comprou uma fazenda ao longo do Rio Juqueri-Guaçu ao perceber que a região era rica num mineral ótimo pra produzir cal. Conhecido pelo seu empreendedorismo, manda então construir dois fornos que passam a produzir ativamente cal, que era transportado no lombo de mulas até a estação ferroviária de Perus, para depois ser enviada para São Paulo e Santos. Estes fornos que foram a inspiração pra denominação da localidade, Caieiras. Somente em 1877 o Coronel mudaria de ramo investindo na fabricação de papel industrial, atividade que seria embrião da atual Cia Melhoramentos. Consequentemente, os fornos foram esquecidos, mas felizmente são preservados até hoje pela famosa e longeva empresa de celulose.

Lembro que anos trás estive nos “Fornos de Ponunduva”, em Cajamar, que cumpriam a mesma função destes mas as estruturas a minha frente estavam incrivelmente bem conservadas. Desde a enorme parede de tijolos das torres principais, os corredores labirínticos, os trilhos dos vagonetes que abasteciam a caieira e as próprias portas de ferro das mesmas. Tudo perfeitamente reconhecível, a despeito de um ou outras touceiras de vegetação crescendo pelas chaminés ou através das rachaduras de paredes deterioradas. A Melhoramentos fez um ótimo trabalho de restauração e preservação deste marco histórico do município. Ah, umas fitas alertavam da proibição de adentrar no chão de madeira do setor superior interno duma das torres, visivelmente instável sob risco de ruir a qualquer momento.

Após coisa de 10 minutos perambulando pelo lugar, dei adeus aquelas ruinas e continuei minha pernada rumo Caieiras. Tomei a via de chão principal e toquei sentido leste, serpenteando o sopé da Serra do Tico-Tico no meio de muito mato. Logo reconheci uma vereda que interceptava a via principal duma antiga investida que fizera ao Cristo de Caieiras, a muito tempo atrás. Pronto, sabia que agora tava no caminho certo e me mantive nele pois sabia o que me esperava pela frente: seguranças. O destaque deste trecho é um belo espelho dágua reluzindo o azul daquele dia bonito, porém relativamente fresco, fato este que diluiu minha vontade de tchibum.

Dito e feito, pouco mais de meia hora após dar as costas aos fornos fui abordado por um guarda motorizado. “Sabia q não pode estar aqui?”, “Por onde você entrou?” e “Você está em propriedade particular e de acesso controlado!” foram as perguntas na minha direção. Calmamente expliquei que viera pelo outro lado, e como não havia placa proibindo nadicas nem tampouco vivalma na guarita simplesmente entrei. Ainda assim, minha presença não passara despercebida e pude ouvir perfeitamente rádios trocando mensagens da presença dum "estranho" no lugar. Logicamente que fui gentilmente convidado a me retirar dali pela portaria principal, onde cheguei cerca de 15minutos depois, repetindo pela enésima vez a mesma desculpa anterior. Logo deduzo que entrar por aqui pra visitar os fornos esteja fora de cogitação.

Assim, deixo as dependências da entrada principal da Cia Melhoramentos pouco depois das 15hrs, cruzo a Rod. Tancredo Neves (SP-332) e num piscar de olhos me vejo bebericando o “sagrado néctar” num dos tantos quiosques perfilados a frente da Estação Caieiras. Antes de retornar afim de saldar alguns compromissos final do dia, estudei mentalmente novas rotas na direção noroeste pela Reflora, indo além dos fornos. Mas isso efetivamente fica pra oura ocasião. E pra finalizar, esta bonita reliquia de arquitetura peculiar de fato se encontra em propriedade particular e que sua visitação pode ser agendada na própria Cia Melhoramentos, basta se informar a respeito. Ou andar um pouco mais e arriscar adentrar pelo setor oeste, via Reflora, como descrito neste relato. Ai fica a critério travesso do andarilho da vez.

 

 

 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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