Recordando Roberta Nunes

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Se no ano de 2006 alguém me perguntasse quem merecia o título de “montanhista do ano”, eu não teria dúvidas, o montanhista do ano seria Roberta Nunes, uma talentosa e versátil escaladora, que desempenhava bem em praticamente qualquer modalidade de escalada, fossem as esportivas das pequenas paredes do nosso campo escola de escalada no Paraná, fossem as impressionantes paredes patagônicas.

Seu desaparecimento precoce nos privou de uma amiga e inspiradora. Acredito que por conta do seu forte carisma pessoal, ela certamente serviu de inspiração para muitas garotas que a conheceram naquele momento. Por conta da preciosidade do seu testemunho, eu resolvi republicar um depoimento que Roberta deu para meu amigo Hebert Sato há alguns anos atrás e que foi postado no meu blog pessoal (blog do dubois).
 
Espero que este depoimento dela possa servir novamente como inspiração, para que as garotas possam ver que não existem limites para a paixão pelas montanhas.
 
ROBERTA NUNES EM UMA CONVERSA ALÉM DO MONTANHISMO, DEPOIMENTO CONCEDIDO A HEBERT HIROSHI SATO*
 
Sou montanhista há algum tempo e neste intervalo tive a oportunidade de escalar com grandes montanhistas. Dentre estes, me recordo com muito carinho de uma, que nos deixou ano passado (2006), para uma expedição que vai além dos nossos conhecimentos. A montanhista a que me refiro é Roberta Nunes, a quem eu chamava carinhosamente de Robertinha.
 
Em 95, quando iniciei a prática da escalada, me recordo que, em uma de minhas primeiras escaladas sem o meu parceiro, pude escalar com a Roberta. Naquela época, ela ainda não era conhecida e como eu, estava no início da sua prática. Pudemos compartilhar da mesma corda e das mesmas “roubadas” no Anhangava. Fizemos algumas vias e fomos para uma que tinha um grau de dificuldade um pouco maior do que aquelas a que estávamos acostumados a fazer na época – a “Sétimo Dia”. A vez de guiar era dela. Com toda a sua vontade e disposição, ela se preparou e foi para o tão temido teto que existe no início desta escalada. Ao tentar passar do jeito habitual não conseguiu; tentou de outras formas e nada. Nervosismo instalado, quando ela tentou passar pela aresta do teto, a aflição e o desespero fizeram com que ela sofresse uma queda. Eu travei. Como havia muita corda, devido ao lance feito por ela, ela bateu o joelho na rocha. Lembro o desespero que passamos. E o único comentário que ela fez foi “esta queda foi muito boa. Você me travou bem. Que esta queda me sirva de lição. Eu estava me achando muito”. 
 
Alguns anos se passaram e a Robertinha “deixou de ser a Robertinha” para se transformar em “Roberta Nunes”. Mas nunca perdeu o carinho pelos amigos e seu jeito permaneceu carismático como no início. Sempre muito querida e quando podia, nos doava algum material que não havia usado em suas escaladas ou nos vendia por um preço de banana. 
 
No início de 2006, eu estava no final de minha especialização, quando resolvi fazer um trabalho sobre o montanhismo intitulado “Pensando a Relação Homem-Natureza a Partir do Montanhismo – Um estudo de caso no Morro Anhangava – PR”. Uma das propostas do trabalho era de entrevistar escaladores/montanhistas a fim de entender o que era o montanhismo para eles. Por sugestão do meu co-orientador, Edson Struminski (Du Bois), fui entrevistar a Roberta.
 
Conversamos durante cerca de uma hora a respeito de vários aspectos do montanhismo. Ela, infelizmente, não teve oportunidade de ver o trabalho pronto.
 
Eu achava que após a sua morte, esta entrevista nunca sairia dos meus arquivos. Mas, por sugestão do Du Bois, resolvi escrever este pequeno artigo pois imaginamos que, com certeza, ela gostaria que todos conhecessem seu olhar sobre as montanhas. 
 
Lembro como seus olhos azuis brilhavam com as perguntas. Senti que quando a Roberta falava do montanhismo ela não falava de esporte, mas sim de sua vida. Ao questioná-la sobre o que a levou a praticar o montanhismo, ela foi pontual e direta: “em primeiro: a natureza, pois nos sentimos bem estando neste lugar. Em segundo: a busca pelo alto controle, principalmente o controle do medo. Fiquei impressionada, até que ponto podemos controlar o medo com a escalada!”  
 
Com o passar dos anos nós amamos, aprendemos, sofremos, passamos por inúmeras situações e sentimentos. Estas fases pela qual passamos, alguns os chamam de tempo, entretanto outras a chamam de amadurecimento. Nada desumano e tão pouco vergonhoso – amadurecer.
 
A Roberta iniciou o montanhismo não pelo esporte, mas para controlar suas fraquezas e seus devaneios. Com o tempo ou o amadurecimento, a montanha surgia para ela como “um grande amor”. Diz ela, (…) não tem como explicar isto. (…) Através da montanha eu fico mais em silêncio, tento rever o que fiz, o que estou fazendo no momento e o que vou fazer (…). No início [a montanha]era para mim um sinônimo de descobrimento e ao mesmo tempo de aventura. De você ultrapassar os limites. (…) depois com o tempo, vi que não é bem esta situação, [hoje]eu acredito mais em estar bem e no auto-conhecimento”.
 
Interessante pararmos para pensar sobre esta mudança de concepção. As montanhas como um caminho para o auto-conhecimento.
 
Neste sentido, Roberta elogia a postura de pessoas como o Du Bois, com quem disse que aprendeu muito : “Hoje o pessoal é mais voltado para a esportiva, para a história do grau da dificuldade e está perdendo a historia [da]vida na montanha, como viver o seu tempo na montanha, ou seja, estar lá, viver lá, dormir, acordar, cozinhar. A escalada esta indo mais para uma historia esportiva [um esporte]. Me considero uma montanhista. O montanhismo não envolve só o esporte, ou seja, a atividade do corpo (…) o montanhismo fala tudo, é uma filosofia de vida, só que ele te mostra uma nova forma de vida, mostra valores em si, valores de vida. A escalada esportiva (…) complementa parte do montanhismo, é o teu movimento nas trilhas, teu treinamento, ou seja, é o esporte em si. [O montanhismo] mostra uma nova forma de ver vários valores da vida, ou seja, ela vai muito mais além”.
 
Lembro que perguntei porque ela não aproveitava a popularidade dela no meio para mudar o jeito de pensar dos novatos. Rindo, ela comentou:  “Pois é ‘Satão’, até tento, só que quando começo a falar sobre filosofia de montanha, eles falam que eu estou ficando velha”. Senti em sua voz um sentimento de culpa por não conseguir mudar a concepção dos “top teens”.  Mas como ela conseguiria?
 
Sabemos o quanto a busca pelo desempenho é dominante no meio. Espero que a história da Roberta inspire uma reflexão sobre o sentido transcendente da relação do homem com as montanhas e das possibilidades que elas nos trazem de amadurecimento e auto-conhecimento.
 
*Hebert Hiroshi Sato é professor, especialista em Educação, Sociedade e Tecnologia e montanhista/escalador.
 
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Sobre o autor

Edson Struminski escala desde 1979 e é um dos maiores conquistadores de vias de escalada do Brasil. Ele é formado em Eng. Florestal UFPR - 1990 Mestre em Conservação da Natureza UFPR - 1996 Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento - 2006 Sua formação o ajudou a contribuir bastante com o debate e ações que visa a conservação do meio ambiente.

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