A cachu do Saboó

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Fazia mais de década que não pisava no Morro do Saboó, ponto mais alto de São Roque (SP) e que recebe este nome (Morro Pelado, em tupi) devido a sua vegetação rasteira. Mas a velha notícia do fechamento de todas as trilhas a partir do bairro homônimo me motivou a voltar lá pra visitar seu atual acesso oficial. Conhecido por sua aridez e escassez de água, além de alcançar seu topo de mil metros emendei um circuito que circunda boa parte da Serra do Ribeirão, cumeeira que acolhe o morro e reza a lenda, se assemelha a um “dragão adormecido”. Pernada puxada de mais de 15km que, diferente da fama estéril do morro, teve fartura de água e até piscinão com cachoeira.

Pra chegar a São Roque ou se vai na Barra Funda e toma um busão da Cometa que vai direto pra cidade, mas custa os olhos da cara; ou se faz simples baldeações de trem/busão, com custo infinitamente reduzido. Eu fui pela segunda opção, claro. Pra isso saltei pouco depois das 8hr na estação Itapevi, da linha Diamante da CPTM e fui pro ponto do lado de fora, onde logo embarquei no latão de letreiro “São Roque – via São João Novo”, da viação Piracicabana, cujos horários são bem regulares. Viagem esta que leva 40 minutos e é bem interessante, pois o trajeto se dá pela estrada que acompanha a antiga linha férrea da Sorocabana, passando pelos antigos bairros de Amador Bueno, São João Novo e Mailasky. Só nos finalmentes o busuca toma a Raposo Tavares até o destino final.
 
Saltei na rodoviária da cidade as 9:11hr e retrocedi a via principal, passei pelo Largo dos Mendes até interceptar a Av. Brasil, e nela me manter até o final, sentido Jd Guaçu. Não tem muito segredo pois está tudo muito bem sinalizado e basta seguir as placas indicando Morro Saboó ou Castelo Branco. A propósito, do terminal de ônibus de São Roque existe condução que toca pro bairro rural do Saboó, mas como seus horários são pra lá de irregulares decidi chegar ao mesmo na sola.
 
Pois bem, cruzei o portal de entrada da cidade e me pirulitei em linha reta pela Rod. Livio Tagliassachi, deixando São Roque pra trás. No meio do trajeto já podia avistar as corcovas verde claro do Saboó erguendo-se a noroeste. Diz uma lenda local que o Morro do Saboó é um dragão adormecido que assombrava a região e um dia escolheu o local pra dormir, e ali ficou. Não sei de onde surgiu tal boato, mas creio que a serrote tenha essa similaridade de bicho deitado conforme o ponto de vista. E não era da rodovia.
 
Após uma hora de chinelada abandonei o asfalto e adentrei na simpática Estrada Turística do Saboó, que envereda sinuosamente e até o fundo do vale do Ribeirão Guaçu, sempre cercada de muita mata. Somente depois da ponte e subindo pro outro lado do vale, após o clube de aeromodelismo, é que a paisagem se preenche de descampados e os horizontes se alargam. Não demora pra surgir um belo mirante pro morro, com portal de madeira e tudo, que antes não existia. De fato, a “Associação dos Amigos do Morro” tem feito bons trabalhos em prol de seu maior atrativo natureba.
 
Pois bem, o fato é que só cheguei ao Bairro do Saboó por volta das 10:45hr!! Ou seja, quase duas horas de chinelada onde só vi ônibus na direção contraria a minha. Aí fui me esgueirando pelas vielas laterais de modo a encontrar as veredas que antigamente fazia uso pra ganhar o pico, mas não encontrei mais nenhuma. Tava tudo bloqueado, cercado ou protegido por cachorros. Perguntei prum morador das trilhas de acesso ao morro e ele respondeu algo do tipo: “Já não se sobe por aqui faz tempo. A Associação do bairro e moradores agora não permitem mais subir daqui pois deu problemas com gente “nóiada”. As trilhas foram bloqueadas ou aterradas e agora o único acesso é pela entrada principal, ou seja, lá pela Estrada dos Moreiras, ao norte!”.
 
Surpreso pela novidade, embora já tivesse ouvido rumores disso antes, não me restou opção senão fazer o trajeto oficial do morro, que me consumiu mais um tempo de chão. Prossegui então a pernada pela Estrada Turística, pra depois abandoná-la na bifurcação sentido a Castelo Branco. Me mantive nela ainda mais um tanto, dando uma enorme volta ao redor do morro, passando por uma igreja e um pesqueiro, onde me reabasteci de água. Na segunda via de chão á esquerda, chamada de Travessa Julia Mendoça Bravi e marcada por um ponto de ônibus à frente, é a estrada que leva ao sopé do morro. 
 
Dali começo mesmo a ganhar altitude sinuosamente e de forma imperceptível, passando por sítios e chácaras. Num cruzamento tomo intuitivamente a Travessa das Amêndoas até o final. Perguntei a umas crianças a umas crianças se tava indo no caminho certo e elas disseram que sim, isto porque daqui em diante não há nenhuma sinalização. Não demorou pra então o Saboó se descortina duma forma que pra mim era novidade, esparramando preguiçosamente suas corcovas de pasto e pedra na linha do horizonte, sob outra perspectiva. Pude avistar gente e inclusive algumas barracas coroando o largo topo do morro.
 
No final da via de chão finalmente cheguei a entrada, onde uma placa me dá as boas vindas, além de mencionar ali fazer parte do Sitio Serrano, pra trazer todo lixo e que o lugar é “propriedade particular aberta a visitação pública dos amantes da natureza e dos espaços sagrados”. Uma enorme clareira pra estacionamento e um quiosque fechado me lembram que já era hora de comer meu lanche de meio-dia, mas esperei pra fazer isso la em cima, apesar do cansaço de chegar até ali. Então bora subir.
 
Pois bem, a subida não tem erro uma vez que a mesma se dá por meio de um estreito picadão de terra, terrivelmente erodido, que ganha a encosta do morro em ziguezagues. Mas eu me vali dos atalhos existentes que se encarregam de subir direto em meio ao capim, mas com declividade muito mais acentuada. A ascensão se torna penosa não pelo trajeto e sim pelo calor daquele horário, intensificada pela ausência de brisa e sombra. A subida em si é curta e o desnível não passa dos 200m, mas meu passo é lento naquela trilha que se alterna de chão erodido, pedras e terra lisa. O calor parece emanar do solo mas lá vou eu, firme e forte morro acima. No caminho trombei com um moleque fuxicando nas cinzas duma fogueira. Ao indagar o que fazia respondeu: “O pessoal joga moedas no fogo e se fuçar encontra as danadas..”
 
Uma vez no selado da crista principal, segue o estirão final através duma piramba tão íngreme quanto irregular, onde os altos degraus e pedregulhos soltos demandam atenção redobrada. Cheguei nos pouco mais de mil metros do cume exatamente ao meio dia e meia, sob um sol de rachar miolos, sem brisa alguma. Fui recebido por uma nuvem incômoda de mosquitos, que apenas o repelente deu conta. Por incrível que pareça a confortável cobertura descampada de capim estava isenta de lixo, á diferença da minha última visita, sinal que o povo anda cuidado mesmo dali. Sentei numa pequena pedra pra descansar, bebericar minha água e beliscar um lanche, enquanto apreciava a generosa panorâmica a minha volta. Mairinque, Itu, Sorocaba, as Serras de Juquiá, Araçoiaba da Serra, Ibiúna, São Roque e, com esforço, até Osasco aparece pequenina. 
 
Outro detalhe deste morro é que ele é muito frequentado por religiosos, principalmente evangélicos, que consideram o pico “mágico”. E naquela ocasião não foi diferente, pois havia 3 barracas montadas onde pude conversar rapidamente com essa galera, e tive algumas dicas interessantes de atrativos escondidos nos flancos da serra. E o melhor, saber da presença de água a menos de dez minutos de onde me encontrava! Anotei direitinho as instruções e, após me sentir disposto e revigorado, me mandei conhecer aquele serrote mais a fundo. Até porque naquele calorão a sede perdurava e meu cantil estava outra vez vazio.
 
Me despedi do povo e voltei ao selado que divide o Saboó com resto da serra e dali tomei uma bifurcação que desce suavemente do verdejante vale enfiado ao sul. Num piscar de olhos o capim e os caraguatás de altitude dão lugar a frondosas árvores e muitos arbustos de grande porte, que nos agraciam com sua refrescante sombra. Enormes matacões e grutas surgem na encosta, mas o que me surpreende é o som de água que logo se traduz num cano de pvc enfiado na rocha, despejando seu precioso líquido em abundância. Pausa pra goles e goles, claro! De fato, a nascente dali é bem aproveitada pela galera crente pois logo adiante, trilha abaixo, encontro um enorme 9e bem estruturado) acampamento, com banheiro, cozinha, roça, etc…
 
Com cantil novamente abastecido retrocedi ao selado e dei continuidade á pernada pelo resto da serra. Ganho então o primeiro cocoruto de quartzito em árduos e íngremes ziguezagues, pra dali prosseguir pela estreita e ondulada cumeeira. A trilha some e reaparece, as vezes coberta de capim ou pedregulhos, mas basta se manter no alto e tocar sempre pra sudoeste. O último cocoruto é chamado de Morro do Careca pois seu solo é formado unicamente por rochas (como ardósia, que impede crescimento de vegetação) onde há vestígios de acampamento recente.
 
Após o último morro a vereda aparenta sumir, mas o farejo me faz atravessar com facilidade o mato rasteiro que predomina na piramba seguinte, que dá aos baixos platôs de pasto a minha frente. Recordo que da última vez que estive aqui, tocamos indefinidamente pro sul até dar na perifa de São Roque novamente. Diferente daquela ocasião, desta vez enveredo na direção leste onde reencontro uma trilha muito bem pisada. Pronto, me mantenho nela sempre até o final. A picada vai descendo de forma suave as lombadas de pasto seguintes, de modo a ganhar um ombro serrano mais pronunciado a sudoeste.
 
Mas após um foco maior de mata a picada embica de vez pra leste, bordeja uma encosta tremendamente íngreme e depois despenca fortemente no vale logo abaixo, onde já se escuta o rugido de água. Descendo com cautela alcanço uma clareira onde, procurando bem, reencontro uma vereda que cruza arbustos até finalmente desembocar as margens dum lugar que nunca imaginei encontrar aqui. Cercado de muita mata, as águas do Ribeirão Monjolinho eram represadas num enorme poço, após despencar de uma cascata de pouco mais de dois metros! O lugar é maravilhoso e apresenta vestígios de acampamento, e comporta duas barracas bem espremidas. Horário? Olhei no celular e eram apenas 14:30hr!!! Pausa pra descanso e muito tchibum.
 
Revigorado e mais que satisfeito, prossegui pela vereda que acompanhava o curso do rio e, saltando pedras, cruzava á outra margem. Dali abandona o vale ganhando a encosta de pasto seguinte onde trombei com uma bifurcação óbvia, pro sul e por norte. Como já voltara pela primeira a vez anterior e minha idéia era retornar ao bairro do morro, tomei a segunda via, que percorreu a íngreme encosta de pasto sem perda de altitude durante um bom tempo. O bacana deste trecho é a perspectiva frontal e imponente de todo espigão da Serra do Ribeirão!
 
No extremo daquele largo ombro serrano a vereda vira pra leste e toca pra sudeste, cruzando um trecho de mata arbustiva maior, onde tropeço com mais uma bifurcação. Uma ramificação prosseguia rumo sudeste enquanto a sua variante ia no sentido desejado, ou seja, pro norte. Dei continuidade a pernada agora cruzando uma agradável florestinha pra chegar onde minha intuição dizia que chegaria, no quintal duma fazendinha. Cruzo o cocho apenas pra alertar a estridente cachorrada da minha presença e num piscar de olhos tomo o estradão de chão que prossegue pro norte. Pronto!
 
No caminho, dei um último olhar ao Saboó, que se escondeu nas frestas do espesso eucaliptal que cruzei e, após cerca de 20 minutos, desemboquei as margens da Estrada Turistica do Saboó, pouco antes das 16hr. Ali fiquei estatelado no chão por meia hora, onde tive como trilha sonora o chiado dos gaviões mesclado ao planar dum avião de aeromodelismo próximo. Coisa de meia hora consegui embarcar no latão rural que tocou entre muito solavanco pra São Roque, e dali pra Itapevi foi mais um tantinho.
 
As benfeitorias promovidas pela Associação dos Moradores do Bairro em conjunto com os proprietários do Sitio Serrano realmente beneficiaram o Morro do Saboó, isso é fato. Mas a interdição dos acessos a partir do bairro apenas dilataram ainda mais o trajeto de quem vai ao pico mediante transporte público, e essa é uma realidade á qual os andarilhos terão que se acostumar. O trajeto, nesse caso, é bastante recomendável aos adeptos duma magrela. Ou, se for caso, aos andarilhos restam os acessos a partir dos bairros a noroeste do Jd Guaçu, que são vários mas demandam folego e disposição. Independente da rota adotada, agora os rolês deixarão de se tornar arduamente exaustivos, em terreno árido e vegetação seca. Pois haverá sempre a recompensa que motive o andarilho mais decidido, traduzida na forma dum banho merecido e refrescante.
 
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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