A Conquista da Serra da Prata

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O montanhismo paranaense é repleto de boas histórias desde 1879, quando foi atingido o Olimpo, ponto mais alto do Marumbi, inaugurando o desporto no Brasil. As atenções voltaram-se então para as outras montanhas daquela serra. No final de 1940 todos os cumes do Marumbi estavam conquistados. Seus desfiladeiros, fendas e paredões desafiavam a geração de aventureiros que disputavam espaço nos trens que chegavam sobrelotados naquela pequena estação ferroviária aos pés das famosas montanhas. Os jornais publicavam em manchetes as notícias das grandes vitórias.

O geólogo Reinhard Maack descobriu em 1940 as mais altas montanhas do estado, batizando-as de Pico Paraná, que foram atingidas em julho de 1941 após jornada ininterrupta de 21 dias pela dupla Rudolfo Stamm e Alfredo Mysing.
Em 1943 foi fundado o Círculo de Marumbinistas de Curitiba, reunindo os adeptos do desporte que virou sinônimo nacional: marumbinismo. Analogia de alpinismo nos Alpes, ficou marumbinismo no Marumbi e Brasil.
 Começou então uma verdadeira corrida para as montanhas ainda virgens dos pés humanos. Formaram-se grupos ávidos em ser os primeiros a pisar em seus cumes, em descobrir passagens novas, em mapear os trajetos. Foram atingidos os cumes da Graciosa, Guaricana, Farinha Seca, Feiticeiro, Araçatuba, Araraquara, Anhangava…
Serra da Prata, com seu atraente cume em forma de torre, chamava atenção dos marumbinistas, que a contemplavam como o próximo grande desafio. A Serra da Prata distingue-se por ser uma sentinela avançada, próxima à baía de Paranaguá, a 20km de distância. É balizada pelos meridianos 48º30’ e 48º45 e pelos paralelos 25º30’ e 25º45. Distante 60 km de Curitiba pela BR 277.
Um notável marumbinista, Fernando José Andrzejewski (Cipó) planejava avançar pela vertente Oeste, mais horizontalizada, seguindo cristas mais suaves, atacando finalmente a torre. Partiria de Morretes e seguindo inicialmente pela estrada da Limeira, entraria na mata abrindo picada ou seguindo caminhos de caçadores ou de palmiteiros. Seu grupo teve algumas tentativas frustradas, ora pelo clima, ora pelo esgotamento do tempo disponível das jornadas.
Em outubro de 1943 os jovens marumbinistas Waldemar Buecken (Gavião), Antonio Stengel Cavalcanti (Cangurú) e Haroldo Fleischfresser seguiram de trem até a estação de Alexandra, de onde teriam menos caminhadas até o objetivo. O relato a seguir foi extraído dos famosos diários do Gavião.
PRIMEIRA TENTATIVA
Desembarcaram em Alexandra as 19h00, após atraso do trem por 3 horas na estação de Banhado. O trem prosseguiu para Paranaguá e eles saíram a procura de informações que os levassem ao pé da serra. Carregavam pesadas mochilas com equipamento, roupas e comida para cinco dias. Depois de caminhar por três horas por estradinha arenosa, com muitas encruzilhadas e perdidas inúteis, chegaram as 22 horas ao rancho do senhor Firmo, que os acolheu para pernoite. As 6h45 meteram-se na mata, guiados pelo filho do rancheiro, que os guiou por uns 500 metros numa picada de caçadores, retornando. Seguiram floresta acima e nem se passaram dez minutos, já perderam o rumo. A trilha dava voltas, não tinha marcas recentes, subia e descia
aleatoriamente. Decidiram meter o facão no mato em busca de uma crista que os levasse aos cumes. As 11h30 caiu uma inesperada chuva, quando por encanto encontraram uma grande pedra inclinada, que serviu de abrigo temporário. Batizaram o local de “Apartamento de Encomenda”. Fizeram um foguinho, assaram linguiça e secaram um pouco as roupas. A chuva parou as 12h30 e então prosseguiram metendo a cara na mata desconhecida. A princípio foi fácil abrir caminho, pois o mato era limpo e arejado, mas logo depois que transpuseram alguns paredões, os obstáculos mudaram de figura. Um trecho fechadíssimo por caraguatás e caramirins, que dificultavam o avanço. Revezavam-se na liderança com o facão naquele intenso capoeiral. Não desistiriam, a vontade era grande, acreditavam que conseguiriam.
Finalmente às 16h atingiram o campo do cume de um morro daquela cadeia inédita de picos estupendos. Não acharam nenhum vestígio humano, concluindo ser os primeiros a pisar aquele colosso, que batizaram “Pico da Boa Vontade”. Dali assistiram o espetáculo da contemplação de toda a costa paranaense, numa extensão de 50 quilômetros, perfeitamente visível. Estavam na altitude de mil metros, e o panorama incrível fez esquecer todo o cansaço. Avistaram também à frente um pico mais elevado, que resolveram desafiar. Havia enormes pedras perto, onde poderiam encontrar abrigo para a noite que se aproximava. O vale que os separava não era grande. Foi fácil transpor, porém a subida foi difícil, com as pesadas mochilas e a vegetação dura e espinhenta. Chegaram estropeados e esgotados as 18h15 no alto de uma enorme ponta de rocha, que logo batizaram de “Ponta da Garoa”, pois começara chover. O altímetro do Canguru marcava 1.200 metros. Não enxergavam mais nada ao redor. Ventava muito e improvisaram com a metade da lona de barraca um abrigo para passar a noite. O espaço era pequeno para os três homens encharcados e tiritando de frio. Os cobertores já estavam molhados e o solo inundado. Aproveitaram para coletar a agua que escorria pela lona, pois os cantis já estavam vazios. A lanterna frequentemente apagava. A temperatura era 6ºC. Foram intermináveis as miradas aos relógios, naquela noite que não acabava nunca.
Ao amanhecer, exaustos e totalmente molhados, assistiram uma paisagem desoladora, parecia que estavam em um cemitério. Aprontaram-se para sair dali, sob forte chuva e vento constante. Comeram alguns pedaços de pão que não estavam molhados, pois as três broas viraram sopa. Tiritando, arrumaram as mochilas e partiram daquele lugar, deixando como vestígio as marcas dos rastros e os cortes de seus facões. Desceram rapidamente e não paravam, pois se cessassem os movimentos temiam congelar. Encontraram com alegria a picada dos caçadores e por ela puderam deslizar seus corpos com mochila e tudo. Chegaram ao rancho as 11h40, quando puderam recuperar a roupa seca, que embalaram bem, para não molhar até chegarem à Alexandra.
PRIMEIRA ESCALADA – 6, 7, 8, 9 de abril de 1944.
Aproveitando os feriados da Semana Santa, com clima ótimo, Gavião e Canguru partiram novamente via Alexandra, com material suficiente para quatro dias. Deixaram roupa seca para a volta, percorreram em menos de uma hora os 6 km da estradinha. No último rio existente encheram os três cantis. Sabiam que seria pouco para os quatro dias, teriam que economizar. Entraram no mato as 15h15, pela péssima picada dos caçadores, subindo e descendo, mal elaborada, mas como já a conheciam, perderam-se pouco. Caminharam 3 horas por ela, para alcançar em boa altura o Apartamento de Encomenda, onde seguiriam a própria trilha da primeira tentativa.
Encontraram uma colossal pedra inclinada, onde poderiam abrigar-se de qualquer intempérie. Eram 181h20. Gavião disse: – É o melhor apartamento que tive oportunidade de conhecer!   Foi batizado então de “Apartamento de Luxo” Instalaram-se com conforto e fizeram um delicioso café com água de taquara, que regou o lanche daquela noite.
Na manhã seguinte, depois de um escasso lanche, seguiram as 7h45 com suas pesadíssimas mochilas pelo caminho aberto anteriormente. Depois de uma hora de subida atingiram o Pico da Boa Vontade, onde fizeram tranquilos o primeiro lanche reforçado, preparando-se para rapidamente seguir em frente pela encosta íngreme. Alcançaram a Ponta da Garoa as 9h50.
De facão em punho avançaram para o Pico do Frade, transpondo antes a Pedra Chata, que fica na metade do caminho. Chegaram naquele pico as 11h00, tendo o Canguru conferido seu altímetro, que marcava 1.220 metros. Não encontraram nenhum vestígio humano, constatando serem os primeiros a pisar ali. Avistaram extasiados a majestosa torre que não saía de suas mentes. Ela não estava distante dali, o que aqueceu ainda mais o ânimo da dupla. Entretanto, um profundo vale de mais de 100 metros os separava do objetivo. Desceram então a enorme rampa do Frade, entrando num denso mato de caraguatás e caramirins que tinham que ser abertos com vigorosos golpes de facão. Os companheiros alternavam-se, ora um, ora outro batendo o facão na subida em direção aos enormes paredões. Durante cinco longas horas, com poucas paradas para descanso, encontraram um bom lugar para passar a noite. Eram 16h00 quando deixaram ali suas mochilas e continuaram trabalhando na abertura de passagem até as 17h30, quando voltaram ao local de pouso. Haviam vencido íngremes paredões e rampas e sabiam estar perto do objetivo almejado.
A muito custo conseguiram encher uma latinha com água de caraguatás, com a qual fizeram um café, que misturado com leite condensado não deixava sentir gosto da plantas. – Os lanches de todos os dias eram pão integral, sardinha e salsichas em lata, queijo e leite condensado. Bons alimentos, mas que aumentavam seriamente nossa sede tremenda.
O lugar para o pernoite era admirável. Tinha o chão plano, onde puderam se instalar confortavelmente, enrolando-se nos panos da barraca. O grande paredão ao lado não oferecia segurança contra chuva, que não caiu, mas os protegeu do vento que rugiu com fúria toda a noite. Deram ao abrigo o nome de “Apartamento dos Caraguatás” Estavam alquebrados, o que ajudou a passar bem a noite.
Amanheceu o Sábado de Aleluia e logo que clareou partiram, levando apenas um bornal com máquina fotográfica, um cantil com pouco de água e os facões. Há dois dias economizavam agua, que teria que durar ainda para os próximos dias Abriam o mato duro de altitude com o facão e rompiam com o peito. Quando achavam que alcançaram o topo notaram entre o nevoeiro que o cume onde encontravam-se não era o mais alto. Era 5 metros mais baixo que o maior, que se erguia impressionantemente 50 metros a frente. Batizaram este cume de Pico Aleluia. Entre eles havia apenas um profundo vale, imediatamente penetrado, na ânsia de atingir o topo. Ao lado de um paredão rochoso, como uma benção do céu havia uma poça d’água. Era agua parada, mas não importou, era o precioso líquido que faltava. Parada, mas limpa. Encheram o cantil e prosseguiram aliviados da sede.
Atingiram o almejado cume as 10h45, congratulando-se com fortíssimo abraço pelo triunfo alcançado. Estavam a 1.467 metros de altitude daquela imensa torre de pedra da Serra da Prata. Pela glória do feito e pelo dia especial daquela Semana Santa batizaram o ciúme como Monte Cristo. Assim descreveu o romântico Gavião o êxito da dupla:
– Sentimos mais ainda aquela conquista quando lentamente a neblina dissipou e repentinamente começou a aparecer o mundo grandioso a se estender aos nossos pés num espetáculo de luz e cor. Sentados naquele assoberbado cume rochoso, admiramos os imponentes panoramas, repletos de maravilhas. Permanecemos apenas o curto tempo de duas horas, descansando ao mesmo tempo da forçada aventura, que agora desvaneceu-se de nossa memórias com o que viam nossos olhos… A cidade de Paranaguá e sua baía contendo as ilhas das Cobras, do Mel, Peças, etc., alcançadas pelas nossas vistas 1.450 metros abaixo numa indescritível beleza. A baia de Antonina parecia um perfeito mapa aos nossos pés… Quando as grossas nuvens do sul se dissiparam, apareceram a linda praia de Leste e os balneários de Matinhos e Caiobá… Víamos perfeitamente a baía de Guaratuba com sua maravilhosa conformação… Além de todas as grandiosidades que me já me referi, tínhamos a nossa frente, uns 5 metros abaixo de nosso nível, um colossal bloco granítico, que chamamos de Dedão. Tentamos esforçadamente subir ao seu topo por uma chaminé existente do lado oposto. Ficou para outra tentativa… Quando todas as nuvens reinantes se elevaram de maneira bastante misteriosa, pudemos ver o que mais nos interessava: a Serra do Marumbi e o Pico Paraná. Deixamos aquele apogeu para iniciar a jornada de regresso às 13 horas.
Depois de 5 horas de árduo trabalho de retorno, chegaram na rampa do Frade as 18h30 quando os últimos raios do sol batiam na encosta, encontraram um local debaixo de uma grande pedra, que denominaram Apartamento do Frade, instalando-se para a última noite. Chegaram embaixo as 11h45, para um banho na represa e seguir os 6 km até Alexandra.
NOVA EXCURSÃO À SERRA DA PRATA
Sempre gentil e elegante, Gavião convidou o Cipó, outro apaixonado pelas montanhas, que ansiava subir pela outra face da Prata, para aproveitarem o feriadão de finados, de 1º a 4 de novembro de 1944. Partiram de Alexandra, seguiram a mesma estradinha e ingressaram pela trilha já demarcada, sem segredos para o Gavião. Repetiram o feito numa jornada de três dias, aproveitando o último para descansar na base. No relatório manuscrito de quatro páginas, Gavião descreveu as dificuldades, novamente a chuva torrencial, alternada com abertura do tempo e a intensa contemplação da natureza que se avista daquelas altitudes.
A VIA OESTE
A via planejada por Fernando José Andrzejewski (Cipó), pela face Oeste da Serra da Prata, acessada pela estrada da Limeira, somente foi realizada 22 anos depois, em 10 de julho de 1966, pelo Cipó, em companhia de Henrique Paulo Schmidlin (Vitamina), Ronaldo Cruz (Bigode) e Arlindo Renato Toso. Este trajeto, de aproximadamente 7 km possibilitou o acesso à Torre da Prata em apenas um dia de jornada, bate-volta. Com o tempo, o ponto culminante foi rebatizado de Torre da Prata.
A SERRA DA PRATA PROTEGIDA
Em 2001 foi criado o Parque Nacional Saint-Hilaire/Lange, a primeira Unidade de Conservação (UC) estabelecida por lei no Brasil. Seu nome homenageia o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, que percorreu e descreveu suas viagens pelo país na década de 1820 e ao dedicado biólogo e ambientalista paranaense Roberto Ribas Lange, falecido em 1993.
O parque abrange extensa área da porção sul da Serra do mar paranaense, com sede administrativa em Matinhos-PR.
A TRILHA PARA A TORRE DA PRATA HOJE
A administração do parque desenvolveu um sistema de cadastramento online, que permite aos visitantes obter informações sobre as condições da trilha. O preenchimento do formulário eletrônico orienta e facilita o planejamento da atividade.
Para chegar ao início da trilha, que está no bairro Morro Alto, município de Morretes, seguir pela BR 277 sentido Curitiba-Paranaguá e entrar a direita no km 24, seguindo pela Estrada da Limeira por 7.780 metros. Ali, do lado direito da estrada existem três construções de madeira (uma casa e um barracão mais próximos da estrada e uma casa ao fundo num ponto mais alto do terreno). O caseiro da área é o Sr. Jaime, antigo morador, que atende e orienta os visitantes.
O percurso da trilha é longo e íngreme, exige bom preparo físico e planejamento. Pode ser subido entre 4 e 6 horas, levando mochila leve, com retorno abreviado em uma hora, aproximadamente. Com mochila cargueira e proposta para acampar no cume, pode levar o dia inteiro subindo. Levar sempre lanternas e pilhas de reserva. Usar somente o local para acampamento existente, que tem espaço para apenas duas barracas pequenas (para 2 ou 3 pessoas). Certificar-se antes de iniciar a subida se há outros montanhistas com a mesma intenção.
A trilha é sinalizada por meio de fitas refletivas fixadas nas árvores, permitindo a orientação do visitante mesmo à noite com o uso de lanternas. Este trabalho foi realizado em novembro de 2012 pela equipe do Parque e membros do Clube Paranense de Montanhismo (CPM) e está implantado até os campos de altitude, onde a vegetação é baixa e permite visualizar o cume.
No site do parque tem informações, orientações, inclusive mapa sobre a trilha da Torre da Prata: https://parnasainthilairelange.wordpress.com/

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